quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

“Espionagem”... de Estado?

 “Espionagem”... de Estado?
Um paradoxo chamado Operações de Inteligência

Devaar moosh darad,
Moosh goosh darad.
Antigo provérbio persa[1]


Trabalho de autoria de Fábio Fonseca de Araújo - especialista em Inteligência de Estado e Inteligência de Segurança Pública.


Considerada a segunda profissão mais antiga da humanidade, no entanto, considerações à parte, em minha opinião, a idealizadora da primeira profissão, na verdade, criou a prostituição como estória-cobertura para obter informações secretas... É uma hipótese, por que não?
A própria Bíblia relata a história de uma meretriz chamada Raabe, a qual ocultou em sua casa dois espiões hebreus, Joshua e Kaleb, auxiliando para que estes buscassem informações sobre o poderio militar da cidade de Jericó, antes da invasão daquela cidade.
Informações privilegiadas sobre os inimigos somente poderiam vir de uma fonte, espiões, e tão somente por eles. O “conhecimento” das condições do inimigo somente poderia vir de pessoas empregadas sigilosamente para essa função, homens e mulheres cobertos pelo manto do sigilo em suas ações, valorosos portadores do dom da argúcia, impregnados pela vontade, motivados por inúmeras razões, tais como dinheiro, poder, obtenção de favores, traição, chantagem, ou pela simples aventura, satisfazendo o seu ego de participar em oculto das manipulações e articulações dadas ao destino da humanidade.
Até onde se sabe o tratado mais antigo sobre o uso de espiões em combate é a “Arte da Guerra”, atribuída ao general chinês Sun Tzu, escrito por volta do séc. VI a.C.
A história da humanidade é repleta de relatos sobre o uso da espionagem como forma de obtenção de informações valiosas que seus adversários não estavam dispostos a “compartilhar”, de forma que sua aquisição deveria ser levada a efeito de qualquer forma, não importasse o qual, mas que se obtivessem as informações requeridas.
Com o passar do tempo, os governantes instituíram serviços especializados na busca de informações sigilosas de seus adversários ou concorrentes. Para Hind (1967, pág. 22) “todo um aparelhamento de serviço secreto, que atua quase às claras, ergue-se como uma pirâmide invertida, sobre o único funcionário que age secretamente”.
Essa é uma alusão à realidade dos serviços secretos. Na atualidade, quando se fala em Serviços de Inteligência, no conceito popular, a primeira imagem que surge à mente é James Bond. Devido aos filmes, romances e noticiários jornalísticos cobrindo os infortúnios e mazelas de ações falhas dos serviços secretos, a Atividade de Inteligência é de pronto associada à espionagem, assassinatos, roubo de informações, grampos telefônicos, traições e chantagens.

A realidade é bem outra: James Bond é a antítese do verdadeiro espião! O verdadeiro espião é aquele de quem nunca ouviremos falar, pois ele não existe para o “mundo exterior”, existe apenas em relatórios sigilosos na Agência para a qual trabalhou. Segundo Copeland (1976, pág. 125), os ingleses que conheceram Ian Fleming sustentam que o autor criou suas estórias baseados em um certo James Boone. Este era um inspetor administrativo do Ministério do Exterior. Sua missão era apenas a verificação do inventário dos materiais existentes nas missões diplomáticas inglesas na África e Oriente Médio. Boone alegava para suas inúmeras “namoradas” que sua função ostensiva era uma cobertura para um trabalho mais sério.
Segundo os relatos de Copeland, Boone era um sujeito corpulento e de grande força física,no entanto o cérebro era praticamente vazio. Estava sempre metido em brigas e confusões nos bares e cabarés. Certa feita, Boone desentendeu-se com um bêbado que molestara uma moça, em Teerã. Em uma briga, matou o homem com um único golpe de karatê. No entanto, Boone virou herói da noite para o dia, pois o sujeito que matara era um famoso contrabandista de heroína, procurado pela polícia de cinco países. Assim, Boone passou a viver uma existência de ídolo popular, semiconvencido de que suas fanfarronices inventadas eram a verdadeira realidade.
James Bond alardeia para todos os ventos o seu jargão: “Meu nome é Bond, James Bond... Serviço Secreto Britânico!”. Destrói tudo em sua volta, mata primeiro, pergunta depois.
Estórias ficcionais semelhantes a essas veiculadas pela mídia é que formam o pensamento e a cultura popular de que os serviços secretos ou de Inteligência têm a única função de trabalhar com “espionagem” e que tais missões são semelhantes às empreendidas pelo personagem James Bond. Ou seja, há uma violenta distorção da realidade.
O próprio desconhecimento doutrinário causa tremendos embaraços, tais como o emprego de certas terminologias. Por exemplo, o termo “agente”, em consonância com a maioria dos Serviços de Inteligência internacionais, é empregado para designar a pessoa que “buscará” a informação sigilosa de quem a detém, mas que é necessária para a produção de conhecimentos, sejam táticos ou estratégicos. Normalmente o “agente” é um elemento recrutado operacionalmente, devendo se reportar a um Oficial de Inteligência que atuará como seu controlador. O “agente” irá de fato buscar a informação requerida, através de técnicas operacionais. Embora existam “agentes” operacionais orgânicos, ou seja, pertencentes aos Serviços de Inteligência, trabalhando diretamente na busca de dados negados, a doutrina recomenda que o agente operacional não realize infiltrações, tal missão fica a encargo do que chamamos de “agente especial”, que foi recrutado operacionalmente, recebeu treinamento especializado para a realização da busca de dados negados, pode ou não ser remunerado, mas não faz parte da lotação funcional do Serviço de Inteligência que o emprega.
A Agência Brasileria de Inteligência (Abin) – órgão central do Sistema Brasileira de Inteligência – classifica o termo "espionagem" como sendo a obtenção ilegal de dados ou conhecimentos, de fato, espionagem é crime. [2] Em contrapartida, o Ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), da Presidência da República, General Jorge Armando Félix, confirma que "existem alguns conhecimentos que provém dos chamados dados negados, aqueles que seus detentores não estão dispostos a revelar, que devem ser obtidos de outras maneiras: informantes, aquisição e acompanhamento, enfim, pelas técnicas da chamada 'espionagem', expressão bem de acordo com a mística da atividade".[3](grifo nosso).
Antunes confirma que o senso comum normalmente associa a Atividade de Inteligência a espionagem, trapaças e chantagens e que essa imagem é amplamente incentivada pela literatura ficcional e pela mídia, reforçando o que foi dito anteriormente. Não obstante, a autora explica que o termo “intelligence”[4] é um eufemismo anglo-saxão para a espionagem, porém, afirma que a espionagem é apenas uma parte do processo de inteligência, que é muito mais amplo.
No quotidiano da investigação policial, como, por exemplo, sobre o crime organizado, as boas fontes de informações, ou informantes, vulgarmente conhecidos no meio policial pela alcunha de "X-9", normalmente são aqueles que possuem certa relação pessoal com os chefes do crime organizado, pois seriam as únicas capazes de trazer informações privilegiadas, as quais seriam impossíveis de conseguir sem a confiança mútua entre o investigador e o informante.
O que aconteceria com o informante se este fosse descoberto como "alcagüete" no meio da organização criminosa?  O que poderia acontecer com seus familiares? Será que o sigilo seria primordial e que, por razões óbvias de segurança, o relacionamento entre o investigador e sua fonte fosse "secreto"? Este tipo de ação comumente utilizada nas investigações policiais é, literalmente, uma técnica de espionagem, embora por vezes seja realizado empiricamente, sem a adoção de padrões de procedimentos.
Embora a espionagem seja tida como uma ação ilegal e antiética são empregadas as TÉCNICAS DA ESPIONAGEM para a obtenção de dados privilegiados, e não a realização em si de atos de ilegalidade, principalmente em se tratando de um órgão governamental que tem por missão fazer cumprir a lei, para isso existem dispositivos legais regulamentando e direcionando as ações dos organismos de investigação e Inteligência.
Interceptações telefônicas, acesso a dados cadastrais, bancários, gravações ambientais, infiltração de agentes de polícia e de inteligência em organizações criminosas, com o fim único de produção de provas e de informações podem ser realizadas sob a tutela de uma autorização judicial, e, embora estando autorizado judicialmente, não deixam de ser “espionagem”, pois as técnicas empregadas são as mesmas. A diferença que a ação de “espionagem de Estado” deve estar prioritariamente coberta por uma autorização judicial. Assim, o emprego de Técnicas de Espionagem pelos órgãos de Inteligência Policial, embora soe estranho, desde que fundamentalmente autorizada por uma Autoridade competente, deixa de ser ilegal. No entanto, veremos que embora se usem as mesmas técnicas para a busca de dados negados, Operações de Inteligência divergem de espionagem em vários aspectos. A confusão se dá justamente pela falta de conhecimento doutrinário, ampliada pelo conceito ficcional difundido pela mídia.
Na continuidade do raciocínio, com relação ao sigilo das operações, o General Félix pergunta: "por que tanto segredo?", respondendo que "muitas das ações de Inteligência só podem ser realizadas sob o manto do sigilo", a razão apresentada por Félix é clara e objetiva, quando afirma que de modo geral todas as atividades de Inteligência que utilizem fontes humanas têm uma tendência a serem tratadas sigilosamente. E assim deve ser, com o objetivo de salvaguardar e proteger os profissionais e suas famílias, bem como resguardar os eventuais informantes de qualquer rejeição profissional ou social, e em alguns casos, até de sua integridade física, onde poderá correr até mesmo o risco de ser morto.
Clavell reproduz o pensamento do grande estrategista chinês, do século VI a.C., General Sun Tzu, em seu tratado A Arte da Guerra, escreveu em seu décimo terceiro capítulo o seguinte:
(...) O que possibilita ao soberano inteligente e ao bom general atacar, vencer e conquistar coisas além do alcance de homens comuns é a previsão. (...)
O conhecimento das disposições do inimigo só pode ser conseguido de outros homens. (...) as disposições do inimigo só são averiguadas por espiões e apenas por eles.
Daí o emprego de espiões, que se dividem em cinco tipos: (...)
Quando esses cinco tipos estão agindo, ninguém pode descobrir o sistema secreto.:[5] (grifo nosso)
De fato, num sistema de informações, sempre haverá a necessidade de sigilo nas operações de obtenção de informações privilegiadas. O primeiro manual escrito sobre o uso de espiões em combate é a Arte da Guerra. Sun Tzu ressalta apenas aquilo que há muito tempo vem sendo utilizado para a realização de tal serviço, ou seja, o uso de espiões (agentes/operadores de Inteligência). O fato de salientar que há necessidade de sigilo e que ninguém poderá descobrir o sistema secreto, tem a ver com a segurança das operações, do pessoal empregado e, principalmente, a proteção das informações obtidas.
Interessante salientar que o termo “espionagem” é de origem francesa, com um significado de algo em torno de “espiar de algum lugar oculto ou em secreto”. A palavra “espionage” (do médio francês) faz alusão a “spione” (do italiano antigo) e linguisticamente semelhante ao “spehon” (do alto germânico antigo). O fato filologicamente é interessante, pois, embora semelhantes os termos, os franceses, italianos e alemães tiveram suas raízes históricas bem diferentes. As duas primeiras se originam do latim do Império Romano, enquanto o terceiro termo vem de origem bárbara, dos que cruzaram o Rio Reno. Etmologicamente os termos sugerem “ligações clandestinas” ou “sub-répticas”.[6]
Bastante mal empregado o termo por jornalistas e leigos, “Serviço Secreto” normalmente é associado aos Serviços de Inteligência como um todo. Na prática, a realidade é um pouco diferente.
Segundo Chase Brandon, oficial da Agência Central de Inteligência (CIA), em uma entrevista dada ao documentário “Capa e espada – Operações secretas” (“Cloak and dagger – Covert Ops”, título original, existente nos materiais extras que acompanham o filme A Identidade Bourne),
a CIA é composta por quatro áreas administrativas básicas. Três delas são totalmente abertas. Quase todas as pessoas trabalham no prédio da CIA. Elas têm vida bem normais. A menor parte da CIA, no nosso jargão, é o Serviço Secreto e onde passei toda a minha carreira. Nosso trabalho não é na sede. Não vamos ao escritório todos os dias. Vivemos, trabalhamos e passamos nossa vida inteira espalhados por todo o planeta, tentando descobrir os planos e intenções das pessoas más, antes que possam fazer essas coisas e prejudicar os interesses de segurança nacional dos EUA ou a vida dos cidadãos.[7] (grifo nosso)
Fregapani, na mesma linha de raciocínio, afirma que “a obtenção das informações protegidas ou simplesmente negadas é a missão de todo o serviço secreto, e a viga mestra de toda a estrutura é o ESPIÃO (sic)”[8](grifo nosso)
A maioria dos países, leia-se Serviços de Inteligência, negam realizarem “espionagem”, no entanto, afirmam que fazem “contra-espionagem”. Por que será? A resposta mais óbvia é esta: “porque espionagem é crime”!
No entanto, juntando os conceitos apresentados até o momento, se “Operações de Ingeligência” são ações especializadas para a busca de dados negados, utilizando-se das “técnicas da chamada espionagem” e que o “agente”, seja operacional ou especial, que atua propriamente na busca desse dado negado, pode ser chamado de “espião”, pois nele e na sua missão resultam toda a estrutura e razão de ser de um Serviço Secreto, questionamos: “Operações de Inteligência necessariamente são espionagem”?
A resposta é NÃO! Vejamos as considerações...
Conforme mencionado aterior-mente, Antunes afirma que “a espionagem é apenas uma parte do processo de inteligência, que é muito mais amplo”. A espionagem sempre existiu no seio dos Serviços de Inteligência, sendo realizada pela sua menor e mais importante parte, o Serviço Secreto, e sempre existirá.
A espionagem é uma das pequenas, mas importante, engrenagens da máquina chamada Atividade de Inteligência, no entanto ela não representa o todo, é apenas uma diminuta parte dentro de um complexo sistema de produção de conhecimentos oportunos e necessários, para assessoramento dos responsáveis pela tomada de decisão em nível estratégico.
Farago[9] é pontual em diferenciar Inteligência e espionagem ao afirmar que a
Espionagem é a parte da Inteligência destinada à inspeção sub-reptícia das atividades de países estrangeiros, para descobrir seu poder e movimentos, e comunicar tais dados às autoridades adequadas. É o esforço para desvendar, através de métodos ocultos, os segredos alheios. Devido às circunstâncias e às dificuldades da espionagem, é função autônoma, porém, em última análise, parte integral do esquema geral da Inteligência.
Como a Inteligência, a espionagem age em níveis diversos. Diferenciamos espionagem estratégica, na qual a busca sub-reptícia colima fins importantes, da espionagem tática, objetivo da qual é determinado segredo de limitada ou localizada importância.
Além dessas, há a espionagem política e a militar, cujas respectivas designações indicam a natureza da atividade. Há também a espionagem industrial – atividade largamente desenvolvida, e praticada na guerra e na paz por governos e entidades particulares.
 Farago salienta ainda que
acima de tudo, existe a diferença entre espionagem positiva – a que é conduzida agressivamente para obter segredos de países estrangeiros – e espionagem negativa, ou contra-espionagem, cujo fim é proteger os segredos do próprio país e prender aqueles que tentarem descobri-los em benefício de uma potência estrangeira. [10]
O autor comenta ainda que “entre os praticantes da espionagem, os operadores da ativa são usualmente grupados sob a designação genérica e algo depreciativa de ‘espiões’”[11] (grifo nosso).
Embora, no decorrer da história da humanidade, os heróis de guerras foram muitos deles espiões, sua função é tida como antiética, criminosa, ilegal  sem honra, tanto que aqueles que foram presos, acabaram sendo torturados, mortos por enforcamento, fuzilados, esquartejados, e postos em locais bem visíveis para alerta aos demais sobre o seu destino, caso fossem apanhados.
Pouco puderam fazer os países para salvar a vida de seus “agentes”, além do que houve inúmeros casos que os países negaram todo e qualquer envolvimento com a espionagem descoberta, e sequer conheciam o acusado de espionagem.
É nesse ponto que reside toda a diferença, as ações de espionagem promovidas pelos Serviços de Inteligênica são normalmente desenvolvidas em solo estrangeiro, tanto em países amigos, quanto inimigos, Embora haja casos da chamada “espionagem doméstica” (executada dentro do próprio país e contra os próprios cidadãos), a qual já colocou vários Serviços de Inteligência em “maus lençóis”.
Esta é a primeira regra que se aprende em espionagem: nunca seja pego, se for pego está sozinho.
 Assim, para prosseguir com as argumentações, questionamos: qual é então a diferença entre um “especialista” da Inteligência e um “agente” de espionagem?
Farago[12] faz essa distinção com maestria ao afirmar que
O especialista da Inteligência dedica-se esclusivamente à coleta, avaliação, e disseminação de informações – de todos os tipos, -- a maioria delas provindo de fontes públicas e acessíveis. Sua função é altamente intelectual, na integração dos dados aparentemente sem conexão. O especialista não se precisa disfarçar e, embora suas atividades sejam protejidas por considerável sigilo, ele consegue manter sua identidade verdadeira.
O agente de espionagem se dedica exclusivamente à obtenção de informações secretas, realizando uma função que é apenas parte – quase sempre pequena, mas importantíssima – do esforço total da Inteligência. Ao contrário do especialista da Inteligência, ele deve ocultar a identidade, a exata natureza de sua missão e suas linhas de comunicação, através de falsa identidade e aplicando absoluto sigilo às suas atividades.
Nesse aspecto, pode surgir novamente o equívoco. Ao ler o conceito de “agente de espionagem”, com relação à sua missão, podemos verificar a semelhança entre as Operações de Inteligência para a busca de dados negados (informações secretas) e as ações de espionagem. Salientamos então, que as Operações de Inteligência, para serem executadas devem ser precedidas de uma autorização expedida pela mais alta autoridade do Serviço de Inteligência, em concordância com a chefia/direção do Segmento de Operações de  Inteligência, em atendimento a um Plano de Operações Inteligência, além do que a busca deve considerar os quesitos solicitados em um Plano Nacional de Inteligência.
A diferença é que a realização da Operação de Inteligência deverá obedecer aos parâmetros legais e éticos, preceituados pela Constituição Federal e demais dispositivos que regulam a Atividade de Inteligência no país, já a espionagem, embora também possa seguir a um planejamento que dependa também de autorização hierárquica para sua realização, se dará em solo estrangeiro e consequentemente irá ferir aos preceitos legais daquele país, além do fato de que os “agentes” locais recrutados estarão violando as leis de seu país em detrimento de fornecer informações sigilosas táticas ou estratégicas ao “nosso” Serviço de Inteligência.
Com relação a essa questão delicada, Cepik[13] afirma que
A fonte de informação mais antiga e barata consiste nas próprias pessoas que têm acesso aos temas sobre os quais é necessário conhecer. O acrônimo em inglês que designa essa disciplina (humint) [“human intelligence”] é um eufemismo tipicamente norte-americano, incorporado ao jargão internacional porque evita o uso do termo espionagem, muito mais pesado do ponto de vista legal e político. O acrônimo também é utilizado para indicar que a inteligência obtida a partir de fontes humanas está longe de resumir-se aos arquétipos da espionagem.
Embora o uso do termo “humint” seja mais leve, fatalmente se um informante local estrangeiro for pego passando informações sigilosas estratégicas, táticas, industriais, tecnológicas e/ou militares, será preso por espionagem e traição de seu país, cuja pena pode chegar à prisão perpétua, ou até mesmo a morte. Isso sem falar que, mesmo havendo uma Convenção Internacional para os Direitos Humanos, sem sombra de dúvidas, na clandestinidade, o preso pelo ato de espionagem poderá ser submetido à tortura antes de sua execução.
Toda essa trama era chamada, no auge da Guerra Fria, de “O Grande Jogo”.
Para Soares[14] a Atividade de Inteligência deve ser pautada em uma “Tríade”, composta pelo sigilo, pela legalidade e pela ética.
O grande paradoxo existente, quando se fala em Operações de Inteligência, está justamente na associação dessas ações às questões ilegais, clandestinas, imorais e antiéticas.
A associação feita normalmente pelo pensamento popular e o conhecimento por vezes deturpado por parte daqueles que deveriam realizar o controle da Atividade de Inteligência no país, aliado aos recentes escândalos promovidos por Serviços de Inteligência estatais, fazem com que a realização da Inteligência seja ainda equiparada a atos de espionagem, maculando a imagem já desgastada da Inteligência de Estado, abrindo novos questionamentos sobre a necessidade da virtual existência de Serviços de Inteligência em nosso país.
Golbery do Couto e Silva, mentor do Serviço Nacional de Informações (SNI) chegou a proferir que havia “criado um monstro”, depois que ele próprio, ao se retirar do “Serviço”, como era chamado o SNI, passou a ser “alvo” do Estado.
Nos dias atuais, pelos resultados veiculados pela mídia jornalística, seja escrita ou televisiva, poderíamos afirmar que os Serviços de Inteligência estão agindo pautados na lei, embasados na ética e cobertos pelo manto do sigilo? As ações desastrosas e depreciativas oriundas de ações mal executadas pelos Serviços de Inteligência de Estado não nos remeteria novamente a questionar se o “monstro” ainda está vivo e sem controle?
Qual seria o real “foco” atual dos Serviços de Inteligência hoje, cada um em seu setor de atribuição específico?
É inadimissível a existência de Serviços de Inteligência de Estado, seja na esfera governamental, policial ou militar, que atuem por conta própria à margem da lei, deixando de executar suas funções embasados em uma Doutrina de Inteligência sólida, no entanto, necessariamente cobertos por regulamentações legais, passando a executar “ações de espionagem” doméstica ao invés de Operações de Inteligência. Não é possível admitir que para “um bem maior” se executem ações marginais e clandestinas com o fito da obtenção de informações “secretas” necessárias à produção de conhecimentos táticos ou estratégicos. Para isso existem dispositivos legais, que devem ser cumpridos dentro da necessidade e não de forma banal.
Dessa forma, conclui-se que enquanto houver um paradoxo dentro da conceitualização do termo “Operações de Inteligência”, muito pouco se poderá progredir em consolidar um Sistema de Inteligência digno de confiança e credibilidade, pautado no sigilo, na legalidade e na ética.

Referencial e Leituras complementares
ANTUNES, Priscila Carlos Brandão. SNI & ABIN – Uma Leitura dos Serviços Secretos Brasileiros ao Longo do Século XX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.
CEPIK, Marco A. C. Espionagem e democracia. Rio de Janeiro: FGV, 2003.
COPELAND, Miles. O verdadeiro mundo do espião. Brasília: Gráfica SNI, 1976.
CLAVELL, James. A arte da guerra. Rio de Janeiro: Record, 2002.
FARAGO, Ladislas. O mundo da espionagem – a verdadeira história da guerra de sabotagem. Rio de Janeiro: Dinal, 1966.
FÉLIX, Jorge Armando. Afinal, o que faz a ABIN? Artigo disponível em http://www.abin.gov.br/abin/artigo_gen_felix_140805. acesso em 25/11/2005.
FREGAPANI, Gelio. Segredos da Espionagem – A influência dos serviços secretos nas decisões estratégicas. Brasília: Thesaurus, 2001.
HIND, Allison. História da espionagem. Tradução de Alexandre Pires, Rio de Janeiro: Bloch, 1967.
LARNER, K. Lee; LARNER, Brenda Wilmoth.  Enciclopedia of espionage, intelligence and security. Vol. 1, EUA: Thompson Gale, 2004.
SOARES, André. Operações de Inteligência – Aspectos do emprego das operações sigilosas no estado democrático de direito. Belo Horizonte: Edição do autor, 2009.


[1] “As paredes têm ratos e os ratos têm ouvidos”, provérbio persa que com o passar dos séculos nebulosos de sangue derramado e traição, conspiradores ou inocentes, vítimas de perseguições na Rússia resumiam essa sábia advertência em “As paredes têm ouvidos”, segundo Cel. Allison Hind, em História da Espionagem, Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1967. pág. 53.
[3] FÉLIX, Jorge Armando. Artigo Afinal, o que faz a ABIN? Disponível no site www.abin.gov.br, acesso em 29 JAN 06.
[4] ANTUNES, 2002, pág. 21.
[5] CLAVELL, 2002, pág. 104-5.
[6] LERNER, 2004, pág. 413.
[7] Material extra in A Identidade Bourne. Universal Studios, EUA, 2002.
[8] FREGAPANI, 2001, pág. 59.
[9] FARAGO, 1966, pág. 145.
[10] Idem, pág. 146.
[11] Ibidem.
[12] FARAGO, 1966, pág. 148.
[13] CEPIK, 2003, pág. 36.
[14] SOARES, André. Curso Operações de Inteligência em Inteligência de Estado. Ed. do autor. Disponível em www.inteligenciaoperacional.com acesso em 05/07/2010.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Prostituição e espionagem

Artigo de André Soares – 22/12/2010

Uma unânime máxima auto-afirmativa da cultura da inteligência mundial, orgulhosamente proferida pela arrogante e obscura comunidade internacional, com indisfarçado sadismo, confidenciando a vaidade incontida pela prática de atividades marginais, é a afirmação de que as duas profissões mais antigas da humanidade são a prostituição e a espionagem.
Faz-se, portanto, necessária a manifestação da devida vênia, no sentido de se resgatar a verdade histórica. Pois, as profissões mais antigas da humanidade não são duas, são três – a prostituição, a espionagem e a religião. Suas semelhanças e afinidades são tantas que podem ser consideradas almas gêmeas, sendo indissociáveis e constituindo a melhor representação da história da humanidade.
Mais importante é saber que a genealogia da prostituição, espionagem e religião advém do âmago de espírito humano, eternamente escravo dos seus instrumentos afins – sexo, poder e dinheiro. Por essa razão, todos aqueles que as menosprezaram, desconsideraram, ou tentaram extirpá-las, pagaram sempre muito caro, porque a prostituição, a espionagem e a religião são fenômenos indestrutíveis, pois nada mais são que o retrato fiel do que o ser humano verdadeiramente é sem as quais a humanidade simplesmente deixa de existir.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Ética e Inteligência III - “A Tríade da Inteligência”


Artigo de André Soares – 21/12/2010

A Inteligência de Estado deve reger-se rigorosamente sob a égide da “Tríade da Inteligência”, formada pelo Sigilo, Legalidade e Ética, sem as quais se degenera perigosamente. Contudo, os três esteios que a legitimam possuem o mesmo grau de importância?
A resposta a esta incômoda pergunta pode ser encontrada na obra “A Tríade da Inteligência”, de André Soares, e está retratada no livro “Op Center”, que se transformou em filme. O seu enredo ficcional transcorre no âmbito da atuação de serviços de inteligência, envolvidos na eclosão de uma grave crise internacional, com a iminência da deflagração de uma guerra atômica de grandes proporções entre várias potências nucleares, com conseqüências catastróficas para o mundo.
Numa tensa reunião de emergência da cúpula do órgão máximo de inteligência nacional, envolvendo a presença das maiores autoridades do país, o dirigente máximo da organização, diante daquela situação de caos e sem ter em mente qualquer alternativa para aquela crise, pede a todos os participantes que apresentem sugestões. Após alguns segundos intermináveis de silêncio absoluto, o assessor jurídico se manifesta, sugerindo uma alternativa ainda não cogitada, porém extremante eficiente. Contudo, havia um senão – à luz do ordenamento jurídico vigente, a alternativa sugerida pelo assessor jurídico era, tecnicamente, ilegal.
O dirigente máximo respondeu veementemente ao assessor jurídico, posicionando-se contrariamente à alternativa sugerida e dizendo-se espantado e surpreso de tê-la recebido exatamente de um profissional do direito que, ao contrário, em nome do estado, deveria ser um incansável defensor da legalidade.
O assessor jurídico levantou-se, dirigiu-se pessoalmente ao dirigente máximo, e com maior veemência lhe disse estar ainda mais estupefato em presenciar as maiores autoridades do país, ali reunidas, decidindo a salvação do destino da nação e da humanidade e, diante dessas circunstâncias catastróficas, aquele dirigente estava preocupado com leis?
Todas as respostas a essas dramáticas questões estão abordadas na doutrina da Tríade da Inteligência, que podem ser resumidas nas sábias palavras do coronel Walther Nicolai, chefe do serviço de inteligência do chanceler Bismarck, que declarou: "A Inteligência é um apanágio dos nobres; confiada a outros, desmorona".

sábado, 18 de dezembro de 2010

O eterno retorno


Artigo de André Soares – 17/12/2010

Orientação é uma competição de origem militar, muito pouco conhecida no Brasil, embora também seja desconhecido no país que nossas Forças Armadas possuam a excelência dos melhores atletas do mundo. Esta competição consiste em que o atleta, inserido numa área desconhecida, consiga, no menor tempo possível, localizar-se no terreno e a partir daí encontrar vários pontos, que lhe são indicados num tipo de mapa, denominado de carta, e com o auxílio de uma bússola.
Numa dessas competições, um determinado atleta, deslocando-se pelo terreno e orientando-se na sua carta e bússola encontrou um dos pontos da competição. Satisfeito por estar corretamente orientado no terreno e com boas chances de vitória, partiu confiante para encontrar o próximo ponto, seguindo o melhor percurso que prontamente identificou. Apesar da dificuldade encontrada, perseverou e o encontrou. Contudo, no momento em que assinalava sua passagem por aquele ponto e já partia ainda mais confiante para o próximo, ouviu um breve comentário do fiscal de prova que ali estava camuflado e escondido, que o deixou literalmente apavorado.
Disse-lhe o fiscal:
“O Sr já passou por aqui.”
Nesse instante, desabou sobre o referido atleta um sentimento de desespero, insegurança e desorientação, pois ele se conscientizou que, ao contrário de estar orientado como imaginava, na verdade ele esteve todo o tempo completamente perdido e equivocado, pois o novo ponto que ele acreditou ter encontrado era exatamente o mesmo ponto do qual havia partido. E se não fosse a advertência do fiscal, ele ainda estaria iludido e perdido na sua própria ignorância, não sabendo sequer que estava exatamente no mesmo lugar de onde nunca havia saído.
Porém, ainda mais perturbadora que a situação vivida pelo referido atleta em sua competição é descobrir que ela é apenas um pequena reprodução do que acontece na vida real. Na verdade, doutrinas filosóficas muito consistentes demonstram que a vida não passa de um eterno retorno, exatamente como no equívoco do atleta.
Com todas as terríveis conseqüências para as pessoas que essa doutrina possa causar, caso verdadeira, é de bom alvitre que se tenha a coragem de investigá-la. Porque se a vida for verdadeiramente um eterno retorno, a chance de melhores destinos terão somente os perdidos que souberem que estão perdidos. Pois, no percurso inexorável da vida real não há fiscais de prova.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Wikileaks à mineira

Servidora da Câmara questiona em site contratos fechados pela Casa e assunto estoura na internet. Funcionária teria sido ameaçada de demissão
Amanda Almeida - Estado de Minas 17/12/2010 

 
Do outro lado do oceano, em Londres, o australiano Julian Assange, fundador do site Wikileaks, foi libertado ontem depois de nove dias de prisão. Acusado de estupro, o motivo da reclusão teria encoberto interesses políticos e econômicos. Depois de a divulgação de documentos sigilosos ter mexido com grandes potências mundiais, informações bem incômodas alardeadas por uma versão mineira de Julian agitaram a Câmara Municipal de Belo Horizonte ontem. Ao questionar preços de contratos da Casa, a servidora Núbia Souza, de 24 anos, teria sido ameaçada de demissão pela Coordenadoria de Comunicação da Câmara. A presidente da Casa, Luzia Ferreira (PPS), nega qualquer tipo de retaliação.

Em outubro do ano passado, Núbia e amigos tiveram a ideia de criar um site que divulgasse informações de órgãos públicos. “É parecido com o Wikileaks, mas tem uma diferença: ao contrário dele, a intenção é usar somente documentos públicos. Queremos cruzar informações para investigar irregularidades”, diz. Segundo ela, que é formada em sistema da informação, o arquivo tupiniquim de documentos oficiais começou em São Paulo, com o grupo Esfera, e se espalhou pelo Brasil com o nome de Transparência Hack. Em breve, os mineiros vão lançar um site para divulgar levantamentos. Em meio a pesquisas para o grupo, Núbia encontrou dois contratos curiosos na Câmara Municipal de BH, onde trabalha há cinco anos como servidora terceirizada da Diretoria do Legislativo.

De acordo com o site de transparência da Câmara, em agosto de 2010, a Casa adquiriu 30 pacotes de 100 copos plásticos por R$ 681. Ou seja, cada pacote, comprado em supermercado por cerca de R$ 5, custara R$ 26 à Casa. Já em março de 2009, segundo o site, foram comprados 500 CDs regraváveis por R$ 56 a unidade. “Indignada com os valores, eu tuitei os contratos no início do ano e as pessoas foram divulgando pela internet”, afirma Núbia. O assunto estourou na web e teria chegado aos ouvidos da Coordenadoria de Comunicação. “Na quarta-feira, minha chefe me chamou e disse que a comunicação queria me demitir por eu ter falado mal da Câmara. Mas, como sou uma boa funcionária, ela tentaria me manter. Não fiz nada errado. Apenas falei sobre um assunto que é público.”

O clima esquentou na Casa e alguns vereadores procuraram Núbia para entender o caso. No fim do dia, a presidente Luzia Ferreira negou a ameaça. “Não houve isso. Nós prezamos pela liberdade de expressão de qualquer pessoa. A chefe conversou com ela para saber o que ela estava divulgando, se eram informações sigilosas da Casa. De qualquer maneira, vamos investigar se houve a ameaça. Qualquer funcionário é livre para manifestar sua opinião”, diz Luzia. Sobre os contratos, ela afirma que houve erro de digitação e um mal-entendido.

“Todos os materiais da Câmara são adquiridos por milheiro. Ou seja, compramos 30 pacotes de 1 mil copos, que estavam divididos em pacotes com 100 copos. Ou seja, compramos 1 mil copos por R$ 26. Já em relação aos CDs foi erro de digitação. Não era R$ 56 a unidade, mas R$ 0,56. Todas as notas fiscais estão arquivadas e podem ser conferidas”, diz Luzia. Depois do susto na Câmara, Núbia diz que o movimento mineiro crescerá. “Vamos lançar o site com informações sobre a Assembleia Legislativa de Minas Gerais. O Wikileaks fez um barulho maior do que o nosso, mas ficar de olho no poder público tem sempre seu mérito.”

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