domingo, 23 de janeiro de 2011

"Os Serviços de Inteligência e as Operações Clandestinas"

Artigo de André Soares, publicado na Edição Especial da "Revista Jurídica CONSULEX"


As ações realizadas pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) em sua participação na operação da Polícia Federal batizada de Satiagraha, as quais foram denominadas pelo presidente da chamada CPI dos Grampos de “ações paralegais”, e que levaram o Presidente da República a ordenar o afastamento do Diretor-Geral da ABIN e de vários diretores de suas funções, bem como a determinar a sua apuração rigorosa; impõem a necessidade de revelar uma realidade dos serviços de inteligência que o imaginário coletivo supõe existir apenas em livros e filmes de ficção de espionagem - as operações clandestinas.
Pode-se definir operações clandestinas como sendo ações criminosas, patrocinadas por serviços de inteligência nacionais, em benefício de pessoas ou grupos, à revelia e em detrimento do ordenamento jurídico vigente. Constituem grave atentado à democracia, ameaça à sociedade, e sempre resultam em sérias, e não raras vezes trágicas, conseqüências para o Estado Democrático de Direito.
Tradicionalmente houve e continua havendo, no país, um desconhecimento da sociedade, dos dirigentes e dos governantes sobre os serviços de inteligência, isso em razão do obscurantismo de suas ações, bem como da ineficiência dos órgãos responsáveis pelo controle dessa atividade.
Este cenário, aliado às irregularidades identificadas pela CPI do Grampo e pelas investigações da Polícia Federal evidenciam a existência de um ambiente favorável às ações ilegais e suscitam questionamentos sobre sua ocorrência.
Responder a essas perguntas exige o conhecimento da realidade intestina dos serviços de inteligência, bem como do das operações clandestinas, que são concebidas para não serem descobertas, pois, caso contrário, “desacontecem”.
Quando falham os pilares da tríade da Inteligência de Estado - o sigilo, a legalidade e a ética -, a atividade passa a representar elevado potencial de risco, e subverte a sua função de instrumento de defesa do Estado, da sociedade e dos valores em que se funda.
No Brasil, já temos leis que regulamentam o emprego do sigilo e que constituem instrumentos adequados para o exercício da Inteligência de Estado, a despeito da necessidade de aperfeiçoamento desses instrumentos.
A Constituição Federal de 1988 impõe a publicidade aos atos da administração pública, exceção feita somente aos casos que representem risco à segurança da sociedade e do Estado. Assim, a publicidade dos atos estatais é a regra, do que decorre o direito de acesso à informação, de acesso ao poder judiciário, para a correção de atos ilegais que firam direitos individuais ou coletivos, bem como a obrigação dos órgãos responsáveis pelo controle interno e externo da inteligência de zelar pela observância da publicidade e pelo uso restrito do sigilo, circunscrito às necessidades reais de defesa externa  e da sociedade.
Temos legislação bastante pormenorizada estabelecendo, por exemplo, as situações em que caberá o emprego do sigilo, os limites de sua aplicação, as autoridades investidas dessa atribuição, sobre os graus de sigilo e seus prazos-limite. Portanto, tão-somente o cumprimento da legislação em vigor constitui excelente instrumento de combate às ações clandestinas.
Todavia, a principal forma por meio da qual os serviços de inteligência transitam para a  ilegalidade  se dá pela manipulação das operações de inteligência, que constituem o que há de mais sigiloso nos serviços secretos. Estas possuem alto grau de compartimentação e sigilo, empregam verba sigilosa e técnicas operacionais, além de se desenvolverem em condições especiais que, se desvirtuadas, proporcionam acobertamento a todo tipo de ilicitude.
No Brasil, o conhecimento da genealogia das operações de inteligência e de sua propedêutica está restrito exclusivamente à cúpula dos serviços de inteligência. Configura-se, assim, indevida e perigosa independência dessas organizações, para atuação em seara de grande sensibilidade aos interesses nacionais.
Sobre o tema, vale destacar importantes fundamentos da doutrina de inteligência, praticados pelos melhores serviços de inteligência de países mais desenvolvidos, que constituem valioso saber relativo às melhores práticas dessa atividade.
Consagra a doutrina que o emprego de operações de inteligência é de atribuição e competência exclusiva, pessoal e indelegável do dirigente máximo do serviço de inteligência, previsto em legislação e normas regimentais institucionais sigilosas. A autorização para sua realização, alterações e encerramento se dá mediante ordem expressa e direta deste dirigente, em documentos específicos, com aposição de sua assinatura pessoal e das demais autoridades responsáveis, segundo rito procedimental administrativo sigiloso.
Em que pese esta doutrina estar prevista em alguns serviços de inteligência nacionais, como a ABIN, o que se verifica de fato é sua pouca efetividade. Assim, uma vez “abertas”, não é incomum operações de inteligência terem seu propósito desvirtuado e serem conduzidas para o atendimento de interesses adversos, utilizando-se de seus recursos, pessoal, material e da proteção legal do Estado. Estes desvios, por vezes, se dão com a aquiescência da cúpula do próprio serviço de inteligência e, em outras, em total desconhecimento do dirigente máximo que a autorizou.
Destaca-se que a referida doutrina de inteligência preconiza e normatiza, detalhadamente, o registro documental de todas as ações realizadas nas operações de inteligência, bem como seu histórico. Assim - ao contrário de opiniões equivocadas, segundo as quais operações sigilosas são incompatíveis com prestação de contas – os gastos com verba sigilosa, o emprego de pessoal e material, bem como todas as ações operacionais realizadas são pormenorizadamente documentados e classificados com alto grau de sigilo.
A despeito da elevada salvaguarda dessas informações, a legislação brasileira prescreve situações e condições de acesso integral a elas, a qualquer tempo, para o cumprimento de suas atribuições, especialmente aos órgãos responsáveis pelo controle da atividade de inteligência como a Comissão de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso Nacional (CCAI), o Poder Judiciário, o Ministério Público Federal, os Ministérios Públicos Estaduais, o Tribunal de Contas da União, os Tribunais de Contas dos Estados, o Poder Legislativo, a Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Poder Executivo, e a Secretaria de Controle Interno da Presidência da República (CISET). Portanto, o cumprimento da legislação em vigor constitui excelente instrumento de combate às ações clandestinas, por possibilitar às instituições e órgãos responsáveis condições plenas de fiscalização e auditoria sobre todas as ações sigilosas dos serviços de inteligência nacionais.
Cumpre mencionar que, dentre às instituições e órgãos responsáveis pelo controle da atividade de inteligência no Brasil, cabe à Comissão de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso Nacional (CCAI) a maior responsabilidade por esta ação, em razão das atribuições e poderes especiais de que dispõe. A CCAI constitui a mais alta instância nacional de inteligência e é a sua atuação exemplar que possibilitará a efetiva apuração e devida responsabilização por eventuais desvios cometidos, especialmente no caso de ações clandestinas. Desempenha, portanto, papel primordial e determinante na condução da Política Nacional de Inteligência no país, a exemplo das estruturas congêneres que, no plano internacional, têm protagonizado os maiores aperfeiçoamentos e avanços da Inteligência de Estado de países democráticos, particularmente nas situações de crise.
Entretanto, nenhuma legislação se faz cumprir por si mesma. Essa é uma responsabilidade das pessoas, da sociedade, das instituições e dos governos. A força motivadora dessa ação representa o verdadeiro significado e exercício da cidadania que, entretanto, não é suficiente para coibir completamente ações deletérias que acometem os serviços de inteligência, particularmente as ações clandestinas. Estas conseguem, ainda, escapar aos instrumentos e controles objetivos do estado. Todavia, não sobrevivem ao derradeiro pilar da tríade da inteligência – a ética.
A ética no exercício da Inteligência de Estado é determinante na concepção, condução e êxito dos serviços de inteligência. Marginalizá-la, ao contrário, é a certeza de fracasso da atividade de inteligência e dos fins a que se destina, como a história vem demonstrando.
A despeito do discurso oficial das instituições de inteligência no Brasil em favor da ética, o enfrentamento deste tema causa profundo desconforto aos serviços de inteligência, que abordam esta questão mediante estratégias dissimuladoras em relação às suas práticas, nas quais, como se verifica, a ética é perigosamente negligenciada.
O âmago dessa questão demonstra que a inexistência de um código de ética próprio e efetivamente adotado nos serviços de inteligência revela a falta de profissionalismo e de sólida postura ética de seus dirigentes, a existência de dilemas e conflitos internos, e a hegemonia de uma mentalidade corporativista contrária ao discurso oficial. Essa conjuntura é agravada pelo diletantismo com que a atividade de inteligência é exercida e pelo despreparo de muitos de seus recursos humanos, incluindo-se dirigentes e operadores de inteligência.
Consolida-se, assim, o domínio de uma “cultura” marginal de uma “comunidade de inteligência”, cujo resultado final é a realização de operações de inteligência no país eivadas de irregularidades, impropriedades, vícios e oficiosas.
O alcance das ações operacionais é ilimitado e envolve a participação de pessoal não orgânico. Forma-se, portanto, poderoso “exército invisível” de fontes humanas, constituído de colaboradores, cooptados, informantes, recrutados, infiltrados, agentes especiais e agentes duplos que, atuando sob as ordens e patrocínio dos serviços secretos, realizam trabalhos cuja grande sensibilidade e risco representam significativo comprometimento para o Estado, inclusive em nível internacional. “Comandar” este “exército invisível” é tarefa difícil, sensível e altamente sigilosa que deve ser afeta somente aos profissionais mais competentes, experientes, equilibrados, responsáveis e éticos. Todavia, invariavelmente, a inépcia de muitos dirigentes e operadores de inteligência conduz a erros operacionais sérios com conseqüências graves, os quais, indevidamente protegidos pelo sigilo e pela compartimentação, acabam por “desacontecer”.
A prevalência deste cenário de deficiências e vulnerabilidades de ordem ética, aliado aos grandes interesses envolvidos nas operações sigilosas acaba por proporcionar o ambiente favorável à pior ameaça aos serviços de inteligência – a corrupção. Configura-se, então, a falência do “sistema imunológico” do Estado, que se torna efetivamente vulnerável a toda espécie de ameaças adversas, especialmente aos serviços de inteligência estrangeiros.
Desnecessário mencionar que o Brasil é alvo dos serviços secretos de vários países, em razão de sua importância geopolítica, do grande valor de seus recursos naturais e de suas potencialidades e expertise em vários campos do poder. Combatê-los é tarefa de alguns serviços de inteligência nacionais e missão exclusiva da ABIN, constituindo a própria razão de sua existência. Entretanto, no plano internacional, os alvos prioritários dos serviços de inteligência são os seus congêneres dos países de interesse e, no Brasil, os controles de contra-inteligência adotados não impedem que serviços de inteligência estrangeiros atuem livremente no país. Nesse mister, é significativa a atuação em território nacional, particularmente da CIA (EUA), MOSSAD (Israel), BND (Alemanha), DGSE (França) e o serviço secreto chinês, patrocinando ações de significativo prejuízo ao Estado, que a sociedade brasileira desconhece.
Cumpre lembrar o destino dos profissionais de inteligência éticos, homens e mulheres, que lutaram pela tríade da inteligência de Estado, no Brasil. Muitos foram perseguidos e derrotados. Alguns tiveram suas vidas destruídas e caíram em desgraça. Outros, ainda persistem.
Diante da grave crise de inteligência vivenciada pela atual conjuntura nacional, é fundamental ao Estado e à sociedade conhecer sua verdadeira dimensão, pois o povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la. Se operações clandestinas “desaconteceram”, ou estão por “desacontecer” no Brasil, certamente profissionais de inteligência éticos combateram e estão combatendo “o sorrateiro”, porque têm a coragem moral e ética de fazê-lo, mesmo quando o próprio Estado não o faz.
A solução para os graves problemas da Inteligência de Estado no Brasil foi, há muito, proferida pelo Coronel Walther Nicolai (1873/1934 - Chefe do Serviço de Inteligência do Chanceler Bismarck), em sua máxima inexorável:
“A Inteligência é um apanágio dos nobres. Confiada a outros, desmorona”.

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