domingo, 23 de agosto de 2009

30 anos da Anistia

Folha de São Paulo 23/08/09

Lei da Anistia racha governo e chega ao STF
Ação da OAB que permitiria punição de torturadores é apoiada pela Casa Civil e pela Justiça e criticada pelo Itamaraty e pela Defesa

A necessidade de punir torturadores já surgiu no dia da votação da lei, em 22 de agosto de 79, nos discursos de parlamentares do MDB

RUBENS VALENTE

PEDRO DIAS LEITE

ANA FLOR

DA REPORTAGEM LOCAL



Trinta anos depois de sancionada pelo general João Baptista Figueiredo (1979-1985), o último presidente da ditadura, a Lei da Anistia, que possibilitou a volta dos exilados, é hoje o pivô de um racha no governo.

O debate jurídico gerado por investigações abertas pelo Ministério Público Federal para punir torturadores levou setores do governo a defender uma nova interpretação da lei, pela qual seria possível levar a julgamento militares e agentes do Estado que praticaram torturas e assassinatos na ditadura.

A discussão está agora no colo do STF (Supremo Tribunal Federal). Em outubro passado, o Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) ingressou no tribunal com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental pedindo que o STF declare claramente que a anistia concedida pela lei 6.683 "não se estende a crimes comuns praticados por agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime militar".

O ministro relator do caso, Eros Grau, mandou ouvir os órgãos envolvidos. Em pareceres, apoiaram a OAB o Ministério da Justiça, a Secretaria de Direitos Humanos e a Casa Civil. Contrários estão a AGU (Advocacia Geral da União), o Ministério da Defesa e o Ministério das Relações Exteriores.

"É uma falsidade dizer que punir torturadores é um ataque contra as Forças Armadas. Pelo contrário, arguir isso é que é usar o prestígio das Forças Armadas para defender torturadores", disse à Folha o ministro da Justiça, Tarso Genro.

O ministro da Defesa, Nelson Jobim, que comanda os militares, afirma que a anistia, para todos, não pode ser revogada. "Se você inventasse de revogar a Lei da Anistia, a revogação não teria efeito retroativo. O anistiado está anistiado."



Torturadores

A história da lei está resumida no processo de nove volumes que acompanha o projeto de lei 14/79, hoje no Arquivo do Senado. A lei foi aprovada pelo Congresso, numa sessão conjunta tumultuada, no dia 22 de agosto de 1979, e assinada por Figueiredo seis dias depois.

O processo revela que a necessidade de prever punição aos torturadores já surgiu no dia da votação, ainda que lateralmente, em discursos de parlamentares do MDB, como Airton Soares (MDB-SP) e Walter Silva (MDB-RJ). As maiores críticas do MDB, porém, giravam em torno de a lei não libertar imediatamente os presos políticos (alguns ficaram na cadeia até dezembro) e da falta de garantias para o retorno dos servidores públicos atingidos pelos atos institucionais e medidas persecutórias baixadas pela ditadura entre 1964 e 1969.

Em minoria no Congresso, o MDB cedeu à Arena, que apoiava o regime militar. O próprio substitutivo da oposição, também rejeitado, não previa punição aos torturadores. O MDB queria aprovar o que achava possível no momento.

O senador pelo MDB de Alagoas Teotônio Vilela (1917-1983), que percorrera presídios e recebera 43 manifestações de entidades representativas de advogados, jornalistas e artistas, criticou o projeto do governo, mas encerrou seu discurso em tom conciliatório: "Se houve morte de parte a parte, houve sangue de parte a parte. A substância profunda da anistia está em reconciliar a nação".

O maior protesto pelas punições dos torturadores vinha de fora do Congresso, dos que tinham sofrido as violências do regime. Quando a lei foi aprovada, havia 53 presos políticos em presídios de sete Estados, a maior parte em greve de fome. O protesto durou 33 dias. Eles enviaram uma carta a Teotônio, que listou nomes ou apelidos de 251 militares e carcereiros envolvidos em torturas contra presos políticos (dos quais 80 "nos torturaram diretamente") e 27 "centros de torturas" espalhados pelo país.

Um dos autores da carta foi Gilney Viana, preso em 1970 e libertado em dezembro de 1979. Ex-militante da ALN (Ação Libertadora Nacional), Viana assaltou bancos e uma drogaria no interior de Minas Gerais. Disse ter sido torturado, com pancadas, choques elétricos por todo o corpo e pau-de-arara, durante 36 dias seguidos no 1º Batalhão de Polícia do Exército do Rio de Janeiro. Viana sabe o nome do oficial que comandou as torturas e quer que o STF decida que ele pode ser punido. Ele diz que os ex-presos políticos "estão se articulando" para cobrar o STF.

"O chefe da tortura foi um capitão do Exército. Está vivo e aí, todo flozô [boa vida]. Foi visto em Brasília, almoçando. Este era um torturador que já tinha torturado em Minas e o deslocaram para o DOI-CODI do Rio. Ele vai a juízo, vai ser denunciado por crime de tortura. Eu o estou acusando de tortura. Ele tem que responder a esse processo na Justiça como eu respondi ao meu processo", disse Viana, que nos anos 90 foi deputado federal pelo PT-MT.

O ex-senador da Arena Murilo Badaró (MG), 77, líder do governo Figueiredo no dia da votação, atacou a rediscussão da lei: "É ação de gente desocupada. Como não tem ação política nem voto nem prestígio, fica criando matéria de jornal para poder ficar no foco do noticiário. É impossível reabrir esse assunto depois de tantos anos de uma espécie de anistia recíproca. Acho que é um assunto impertinente, desnecessário e sobretudo aumenta as dificuldades do Brasil numa hora tão difícil, de degradação política".

A Lei da Anistia poderá ser discutida em outra frente judicial, esta internacional: o Estado brasileiro é réu na Corte Interamericana de Direitos Humanos em um processo sobre a guerrilha do Araguaia.





30 anos da Anistia


"Feridas da ditadura ainda estão aí", diz Tarso

Para ministro, revisão da lei é "olhar" o passado para "ver com clareza o futuro"

"Quando falamos em punir torturadores, não estamos dizendo que eles irão para a cadeia", afirma Tarso, mas que sejam "sentenciados"

PEDRO DIAS LEITE

ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA



Um dos principais defensores de uma revisão da Lei da Anistia, o ministro da Justiça, Tarso Genro, afirma que "as feridas abertas pela ditadura e pela violência ainda estão aí".

Ele argumenta que a visão de que os crimes da esquerda também seriam punidos é "completamente distorcida", porque os militantes "não só foram todos punidos como muitos barbaramente torturados".



FOLHA - A Lei da Anistia completa 30 anos. Ela atingiu seus objetivos?

TARSO GENRO - O processo de conciliação teve uma consequência extraordinariamente positiva, que foi sairmos de uma ditadura sem um choque sangrento entre irmãos brasileiros. De outra parte, não é uma Lei da Anistia que resolve todo o problema. Mas o processo legal não conseguiu até agora gerar reconciliação plena. As feridas abertas pela ditadura e pela violência ainda estão aí.

Aqui no Ministério da Justiça tratamos numa ótica de reconciliação através da verdade e da assunção de responsabilidade. Não é revanchista, mas exige um olhar profundo sobre o passado para que a gente possa ver com clareza o futuro.



FOLHA - Existe um argumento de que, ao rever a tortura, também seriam revistos os chamados crimes de terrorismo. Qual sua resposta?

TARSO - Essa é uma visão completamente distorcida do processo de anistia, porque parte de uma premissa falsa. Pessoas que cometeram delitos durante o regime militar, todas elas foram julgadas e punidas. Não só foram punidas como muitas foram barbaramente torturadas.

Quando estamos falando em punir torturadores, não estamos dizendo que essas pessoas irão para a cadeia, porque são pessoas que normalmente têm mais de 80 anos. Os fatos têm de ser apurados e as pessoas têm de ser sentenciadas.



FOLHA - O sr. defende que torturadores respondam pelos crimes, mas não que sejam presos? Há torturadores que continuam a trabalhar na máquina do Estado, como a Folha mostrou recentemente.

TARSO - A consequência dessa visão [de que torturadores não devem ser punidos] é que pessoas como esse delegado tenham a coragem de dar entrevista reconhecendo que foi torturador e dizendo sobre uma senhora que não a tinha torturado porque não torturava mulher feia. A tortura foi feita por estruturas paralelas ao Estado, que cometiam atos ilegais em relação à própria vigência do sistema jurídico da ditadura.



FOLHA - Qual a implicação da não punição dos torturadores? A tortura persiste até hoje nas forças policiais.

TARSO - Se não imprimirmos no "ethos" democrático do país uma consciência da barbárie que significa a tortura, vamos perder a oportunidade de fazer com que as pessoas compreendam que não podem derrubar a Constituição. Elas poderão pensar que poderão fazer tudo isso e mais tarde serão perdoadas. E isso é imperdoável.





Governo anuncia Memorial da Anistia em 2010


DA SUCURSAL DO RIO



Diante de uma plateia formada por ex-presos políticos para comemorar os 30 anos da Lei da Anistia, o ministro Tarso Genro (Justiça) defendeu que os militares que participaram de tortura sejam julgados e anunciou a criação de um Memorial da Anistia em 2010.

Ele refutou os argumentos usados para poupar os militares de que a anistia teria sido irrestrita; que teria havido um pacto político na aprovação da lei; que seria revanchismo e desprestígio para as Forças Armadas; e, ainda, que reabriria feridas do período de ditadura.

Tarso defendeu, como alternativa à via judicial, a criação de comissões de verdade e reconciliação, em que os acusados reconheceriam publicamente a violência que cometeram.

O Memorial da Anistia Política será inaugurado em janeiro de 2010, em Belo Horizonte. O objetivo é contar a história do ponto de vista de perseguidos políticos. Terá documentos de processos de anistia, que contradizem arquivos da repressão, imagens e depoimentos.

Os 30 anos da lei foram comemorados com uma homenagem, na sede do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, aos ex-presos políticos que, em 1979, fizeram greve de fome pela aprovação da lei. A greve começou pelo presídio Frei Caneca, no Rio -o protesto foi mantido por 32 dias, até 22 de agosto de 1979, quando a lei foi aprovada.

Cerca de 200 pessoas -ex-presos políticos e familiares de ex-presos- foram convidadas. O governo apresentou um pedido público de desculpas aos ex-presos políticos vítimas de tortura. ""A anistia e o pedido de desculpa nos honram, mas não bastam", disse o ex-preso político Gilvan Viana. Aplaudido pelos demais, ele pediu a abertura dos arquivos militares e a remoção de todos os restos mortais de guerrilheiros. Tarso foi elogiado e se emocionou.

Um grupo de ex-funcionários do Arsenal da Marinha, demitidos em 1985 em razão de greve, exibiram faixas em protesto contra o indeferimento dos processos para a anistia dos afastados. (ELVIRA LOBATO)





30 anos da Anistia


Lula diz que anistia não foi um "ato de benevolência"

Presidente diz que lei "pavimentou o caminho para a redemocratização"

MÁRCIO FALCÃO

DA FOLHA ONLINE, EM BRASÍLIA



Nos 30 anos da edição da primeira Lei da Anistia (Lei 6.683/ 79) do regime militar, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou à Folha Online que "a anistia não foi um ato de benevolência ou grandeza do regime militar", mas um "verdadeiro clamor nacional".

Líder sindicalista perseguido pela ditadura militar, o presidente Lula sustentou que a lei foi importante para "pavimentar o caminho da redemocratização" do país.

"A anistia não foi um ato de benevolência ou grandeza do regime militar, só foi possível pela mobilização crescente da sociedade brasileira", afirmou.

O presidente lembrou que a lei era defendida por estudantes, familiares de perseguidos, jornalistas e pelo movimento sindical, que faziam greves.

"Quer dizer, havia um verdadeiro clamor nacional. Com a anistia, pudemos reincorporar centenas de brasileiros à vida política e pavimentar o caminho da redemocratização, num processo que culminou com uma Constituição que tem garantido avanços extraordinários ao Brasil".

Lula recebeu anistia em 1994. Assim como diversos integrantes de seu governo, o presidente chegou a ser preso pelo regime militar.

Destituído pelos militares da presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, em 1980, Lula estava entre os mais de 100 mil trabalhadores que aderiram ao que foi considerado pela imprensa na época a maior paralisação operária do sindicalismo brasileiro.

Lula e outros sete sindicalistas -entre eles o ex-presidenciável do PSTU José Maria de Almeida- foram presos pelo Dops (Departamento de Ordem Política e Social) como forma de pressionar a volta ao trabalho. Lula foi solto após um mês. Em 1981, foi condenado pela Justiça Militar a três anos e seis meses de detenção por incitação à desordem coletiva, mas a sentença foi anulada no ano seguinte.

Em 2007, o presidente lançou o livro-relatório "Direito à Memória e à Verdade", com o resultado de estudos sobre a repressão a adversários políticos do regime entre 1961 e 1988.

O livro conta 479 casos de mortos e desaparecidos na ditadura. É o primeiro relato oficial do governo confirmando que órgãos de repressão torturaram e executaram opositores. Um trecho acusa a ditadura de atos cruéis contra opositores que não podiam mais reagir.

Lula, no entanto, tem recebido críticas por ter pedido aos seus ministros que deixem nas mãos do Judiciário os debates sobre uma nova interpretação ou a revisão da Lei da Anistia.

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