segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Para Jobim, lei não pode mudar para punir militar

Folha de São Paulo 23 Ago 09

Ministro diz que a revogação da Lei da Anistia não pode ter efeito retroativo
Ministro argumenta que os crimes de tortura já estão prescritos e que tratados internacionais não são superiores à Constituição

DA REPORTAGEM LOCAL

Ex-presidente do Supremo Tribunal Federal e ex-ministro da Justiça (governo FHC), o ministro da Defesa, Nelson Jobim, defende que, juridicamente, a anistia não pode ser revista para punir os torturadores.

"Acho que a Lei da Anistia resolveu um problema da transição. E é uma lei que se esgotou. Esgotou-se no sentido de que cumpriu sua finalidade. O anistiado está anistiado. Se você inventasse de revogar a Lei da Anistia, a revogação não teria efeito retroativo. O anistiado está anistiado", afirmou, por meio de sua assessoria.

A Folha pediu uma entrevista com Jobim no final da semana retrasada, mas sua assessoria alegou problemas de agenda. Ele tem evitado falar sobre o tema, que está em análise no STF. Na manifestação repassada ao jornal, Jobim disse que a Lei da Anistia "foi a forma política encontrada" e que "era a condição estabelecida à época para uma transição gradual, progressiva, para a regra civil".

Em declarações que fez em junho, Jobim classificou de "revanchismo" a proposta de punir torturadores: "Uma coisa é o direito à memória, outra é revanchismo. E, para o revanchismo, não contem comigo".

Jobim argumentou também que os crimes de tortura estão prescritos. Apesar de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário afirmarem que a tortura é crime imprescritível, o ministro diz que a Constituição é superior a eles e nela o único crime sem limite para expirar é o de racismo: "Se o Supremo decidir que a Lei de Anistia não é bilateral, o que eu não acredito, terá que enfrentar um outro assunto: a prescrição. Há um equívoco".

A Advocacia Geral da União, em manifestação no STF, também defende que a lei não seja revista. "A regra é que a anistia dirija-se aos chamados crimes políticos, nada impedindo, no entanto, que seja concedida a crimes comuns. Com efeito, o conceito evoluiu com o tempo, para abranger, também, delitos comuns, em casos especiais, e atos punitivos de modo geral."

"O diploma legal surgiu da negociação havida entre a sociedade civil e o regime militar, que possibilitou, à época, a transição para o regime democrático. Dessa forma, assegurou-se, com a lei, que ambos os lados seriam beneficiados com a anistia, evitando-se, inclusive, qualquer espécie de revanchismo no novo governo", diz a AGU, para a qual "não estabeleceu esse diploma legal qualquer discriminação, para concessão do benefício da anistia, entre opositores e aqueles vinculados ao regime militar".

Em junho, Jobim criticou países que investigaram as ditaduras: "Quero que o futuro se aproxime do presente. Às vezes gastamos uma energia brutal refazendo o passado. Existem países sul-americanos que estão ainda refazendo o passado, não estão construindo o futuro. Eu prefiro gastar minha energia construindo o futuro".


24 Ago 09

30 anos da Anistia
Comissão pode anular indenização milionária

Funcionários demitidos da extinta Vasp custam R$ 285 mil por mês à União

Aeroviários foram afastados depois de greve em 1988; comissão diz que o prejuízo material foi reparado com opção de reintegração

PEDRO DIAS LEITE

ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA



Um dos casos mais controversos na discussão sobre possíveis distorções na concessão de indenização a perseguidos pela ditadura militar (1964-85) está em processo de anulação na Comissão de Anistia e pode vir a ser cancelado.

A indenização a 29 funcionários da extinta Vasp, que custa por mês R$ 285 mil à União e tem decisão de pagamento de retroativos de R$ 37,67 milhões (suspenso por ordem do Tribunal de Contas da União), passa desde junho por um processo de anulação. Se confirmada, será proporcionalmente o maior valor já anulado pela comissão, criada em 2001 para centralizar a análise de todos os casos de indenização já concedidos e estudar novos pedidos.

Os aeroviários foram demitidos depois de uma greve de quatro dias no Carnaval de 1988, com base num decreto da ditadura. Houve depois um acordo para que todos fossem reintegrados à Vasp, que passou, a partir de junho de 1989, a ter controle estatal.

A comissão argumenta que eles de fato foram perseguidos e que têm direito ao reconhecimento como anistiados políticos, mas que o prejuízo material foi reparado quando tiveram a opção de reintegração. Segundo um técnico da comissão, todos voltaram a trabalhar.

Os aeroviários afirmam que a lei não proíbe a reintegração e que garante a anistia em razão da perseguição. Segundo um representante do setor, que pediu para não ser identificado por estar entre os 29 casos que fazem parte do processo de anulação, "a mudança na interpretação da lei é mais uma perseguição política".



Valores
Os oito pilotos recebem mensalmente pensão vitalícia de R$ 18.488,85 cada um, enquanto os comissários ganham R$ 6.926,47 mensais. A Folha calculou que o governo já gastou R$ 15,9 milhões com esses pagamentos -número que leva em conta apenas os valores fixados pela comissão de anistia, excluindo as prestações que eles já recebiam antes.

Os aeroviários já haviam sido anistiados no início dos anos 1990, mas, com a comissão, seus processos foram reavaliados. Nos processos que a Folha consultou, todos os valores foram elevados na revisão.

O caso mais emblemático é o do copiloto Sergio da Silva Del Nero, que recebia R$ 1.832,62 até então e passou a ganhar R$ 18.488,85 mensais -retroativo a que ele tem direito, R$ 3,2 milhões, é o maior de todos os cerca de 50 mil casos que já foram julgados até agora.

A explicação técnica para a alteração é que a lei determina que o pagamento mensal tem de ser feito ao perseguido "como se na ativa estivesse". Para chegar a esses valores, a comissão perguntou às empresas aéreas qual o salário de um piloto, copiloto ou comissário que tivesse seguido a carreira.

O processo de anulação começou no final de junho deste ano. Os aeroviários estão apresentando sua defesa, e a questão deve ser levada ao plenário da comissão para a decisão final. Técnicos acreditam que as indenizações serão anuladas.



Distorções
O presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, defende a revisão e diz que "a desmoralização da anistia carrega consigo 30 anos de luta do povo brasileiro" e afirma que "as distorções da lei não podem ser usadas para descaracterizar o instituto da anistia".

Existem dois tipos de indenização: um para quem não tinha vínculo laboral na época, que pode ser de até 30 salários mínimos por ano de perseguição, até um limite total de R$ 100 mil. É o caso de militantes na clandestinidade e de guerrilheiros, como o do deputado federal José Genoino (PT). O outro tipo é para quem tinha trabalho, que leva em conta a possível progressão na carreira. Essa categoria não tem limite e é nela que estão os casos mais polêmicos, como o dos aeroviários e o do cartunista Ziraldo.

Desde 2004, já foram anulados os processos de mais de 500 ex-cabos, que recebiam pagamentos de cerca de R$ 3.300 por mês e tinham direito, em média, a R$ 240 mil em retroativos para cada um.

A diferença é que neste caso a comissão entendeu que eles não comprovaram que foram perseguidos, enquanto agora o entendimento é que houve perseguição, mas não existe direito à indenização..


Excluídos pela lei querem reparação maior
DA REPORTAGEM LOCAL

Mário Kozel, 86, está com mal de Parkinson e já quase não sai de casa. Sua mulher, Thereza, começa a apresentar os primeiros sintomas de Alzheimer. Quem cuida dos dois é Suzana Kozel Varela, a única dos três filhos do casal a sobreviver aos anos da ditadura. Mas os outros dois filhos não aderiram à luta armada nem pereceram nos porões do regime. Um, o soldado Mário Kozel Filho, morreu em junho de 1968 num atentado da extrema-esquerda ao Quartel General do 2º Exército, em São Paulo. O outro tinha 14 anos na época, passou por uma depressão, e morreu dez anos depois, de câncer no cérebro.

A indenização, pela qual esperaram 36 anos, a família "gasta com os remédios", diz Suzana, que prefere não revelar o valor, que não é alto.

O caso da família Kozel é um dos melhores exemplos de casos que não são contemplados pela lei que estabeleceu as indenizações. O problema é que ela só vale para os perseguidos pela ditadura, mas é omissa em relação às vítimas de atos ligados à situação política da época.

Existem mais casos: o hoje professor universitário Luiz Felippe Monteiro Dias, 53, perdeu a mãe, a secretária Lyda Monteiro da Silva, num atentado com uma carta-bomba à OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), em 1980. Ele recebe uma pensão mensal desde 2005, que hoje está em R$ 670 mensais. Ganhou R$ 100 mil da Comissão de Mortos e Desaparecidos, mas tem outro processo na Comissão de Anistia.

No seu caso, mais do que reparação financeira, quer a verdade. "No país em que nós vivemos, não tem sentido indenizações milionárias. Agora, do ponto de vista moral, de esclarecer, vou lutar até o fim", afirma sobre o atentado jamais completamente esclarecido.

Outro que luta por uma indenização maior é Orlando Lovecchio Filho, que teve a perna esquerda amputada por causa de uma bomba que explodiu quando ele passava em frente ao Consulado dos EUA em São Paulo, em 1968.

Ele chegou a entregar cartas ao presidente Lula pedindo pensão mensal de R$ 20 mil. Recebe pouco mais de R$ 500.



País foca em reparações econômicas
DA REPORTAGEM LOCAL


Desde o fim da ditadura, o Brasil se dedicou quase que apenas ao pagamento de reparações econômicas às vítimas do regime, deixando de lado outros três deveres estabelecidos pela Justiça de Transição. Na passagem para a democracia, os governos têm de dispor à sociedade o direito à verdade, fazer justiça e renovar as instituições.

A publicação do livro "Direito à Verdade e à Memória", em 2007, pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, respondeu em parte à demanda por verdade. Para o procurador da República Marlon Weichert, o pior desempenho do Brasil é na renovação de suas instituições.

Até mesmo na tentativa de reparação, o Brasil teria um longo caminho a percorrer. "Fez-se apenas fez pelo aspecto econômico", diz a pesquisadora Glenda Mezarobba. (ANA FLOR)



Valor de indenizações pagas provoca jogo de pressão e críticas
Grupos que representam anistiados se dizem insatisfeitos com a alteração no cálculo dos valores das reparações pagas

Câmara criou grupo para acompanhar trabalhos da Comissão de Anistia; integrantes consideram medida uma intimidação

DO ENVIADO A BRASÍLIA



Por trás da discussão sobre distorções na concessão de indenizações milionárias a anistiados políticos existe, de um lado, uma forte pressão de alguns grupos organizados, e, de outro, críticas a falhas da lei.

Enquanto a questão dos crimes cometidos de ambos os lados e da busca da verdade sobre muitos casos permanecem com poucos avanços, a indenização aos prejudicados pela ditadura militar tem funcionado há anos. E acabou por levar uma série de críticas.

Integrantes tanto da Comissão de Anistia do governo federal quanto de grupos insatisfeitos com decisões recentes do órgão relatam a guerra nos bastidores. O mais recente instrumento para canalizar a pressão, dizem os dois lados, foi a criação de uma comissão na Câmara, a Ceanisti (Comissão Especial de Anistia), para acompanhar os trabalhos da Comissão de Anistia.

O presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, já foi chamado mais de uma vez para depor sobre casos em que o desfecho não foi favorável a quem fez o pedido, o que é visto como uma tentativa de intimidação por alguns integrantes da entidade, que fazem críticas sob condição de sigilo.

Um documento a que a Folha teve acesso, elaborado por entidades que representam anistiados, lista 13 pontos de descontentamento, todos relacionados a respostas negativas a pedidos de indenização ou a valores abaixo dos esperados.

O principal motivo para a escalada na disputa entre o governo e os grupos de anistiados é uma mudança na interpretação da lei que criou a Comissão de Anistia, em 2002.

Até dois anos atrás, o governo pagava as indenizações vitalícias e os retroativos com referência no ponto em que a carreira do perseguido estaria se não tivesse sido interrompida. Na prática, é como se todos os que fazem os pedidos estivessem no auge da carreira -mesmo quando retomaram seus empregos alguns meses depois ou partiram para outras profissões e foram bem-sucedidos.

Desde então, Abrão passou a aplicar um "princípio da razoabilidade e da adequação aos valores atuais", com uma média do salário da profissão, não mais o topo. Isso levou a uma queda no valor médio das indenizações.

O ministro da Justiça, Tarso Genro, disse à Folha que a legislação é "imperfeita" e permite distorções nos valores das indenizações. Mas afirma que não deve haver mudanças. "É difícil, porque a pressão maior que existe para modificações vai no sentido contrário a essa visão [de que as reparações são exageradas]."

Para Tarso, "o próprio conceito de anistia no Brasil é totalmente deformado".

"Qual é a moralidade que está contida num perdão que o regime militar dá a quem resistiu contra ele, dizendo que eles são criminosos, por isso devem ser perdoados? O conceito de Anistia que temos de trabalhar é o contrário, que o Estado diga para o cidadão que ele errou, e que ele está pedindo desculpas ao cidadão. Tem danos que a ditadura causou para indivíduos e famílias que são absolutamente impagáveis", afirma.

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