André Soares - Autor do livro “Operações de inteligência - Aspectos do emprego das operações sigilosas no Estado democrático de direito” e Diretor-presidente de Inteligência Operacional
Publicado em O Globo - 23/07/2010
'Tropa de Elite' é um filme de José Padilha,que obteve estrondoso sucesso em 2007, levando aos cinemas a discussão realística sobre temas nevrálgicos das polícias do país, dentre eles a corrupção. Nele, o personagem Capitão Nascimento, interpretado pelo ator Wagner Moura, declara que na corrupção policial, o profissional tem três alternativas: ou se corrompe, ou se omite, ou 'vai prá guerra'. Porém, mais perturbadora é a realidade intestina dos serviços de inteligência nacionais; pois, na corrupção da Inteligência, o profissional tem apenas duas alternativas; ou se corrompe, ou "vai prá guerra".
Serviços de inteligência são os guardiões da pátria, atuando sigilosamente contra ameaças ao Estado e à sociedade, como 'sistema imunológico' da nação. Seu pior inimigo? A corrupção. Se, por um lado, serviços de inteligência são as instituições mais afetas ao seu combate, por outro, são as mais expostas e suscetíveis ao contágio. Lamentavelmente, isto ocorre no Brasil nos serviços de inteligência cujos integrantes não possuem fortaleza ética-moral, promiscuindo-se com criminosos e, principalmente, com dirigentes e governantes corruptos.
Os sucessivos escândalos de corrupção que ferem a dignidade nacional levam a sociedade a duvidar da eficiência dos nossos 'guardiões da pátria' em evitá-los. Quando o Estado brasileiro vencer a 'caixa-preta' dos seus próprios serviços de inteligência, descobrirá que eles não o fazem porque o sistema imunológico nacional está contaminado pelo próprio mal que deveria combater. Isto foi revelado, em 2008, nas investigações da Polícia Federal e da CPI das interceptações telefônicas, que desvelaram um festival de clandestinidades na atuação de uma centena de agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), na Operação 'Satiagraha'. Tamanha a gravidade dos fatos que o presidente Lula não hesitou em afastar definitivamente o diretor-geral e toda a cúpula da Abin, órgão máximo do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), deflagrando a pior crise institucional de inteligência de nossa história.
Esse vergonhoso episódio evidencia a principal causa do desvirtuamento dos serviços de inteligência nacionais - a questão ética. Nesse mister, a ABIN é reincidente em flagrante transgressão à ética, não honrando seu compromisso original, assumido com a nação como condicionante de sua criação, de submeter-se a um “Código de Ética próprio para a atividade de inteligência”; pois, uma vez criada, este código sequer foi elaborado.
Assim, as apurações da 'Satiagraha' expuseram à sociedade a subcultura deturpada praticada pelos agentes da Abin, que durante meses agiram clandestinamente; em promiscuidade com ex-agentes; sem controle; ferindo de morte a doutrina de inteligência; à revelia da legalidade; a serviço de interesses personalistas e escusos; atentando contra o próprio Estado; e confiantes na mais completa impunidade, certos de se esconderem sob o manto do sigilo institucional. Não fosse o acaso de terem sido descobertos, sabe-se lá que prejuízos mais teriam causado ao país; pois, dentre todos esses homens e mulheres da ABIN, não houve sequer um(a) honrado(a) e corajoso(a) cidadão(ã) a denunciar esse estado de coisas. Ao contrário, todos foram cúmplices, todos sabiam de tudo. Mais estarrecedora é uma Inteligência nacional confiada aos indignos; pois, quando chamados à responsabilidade nas investigações da PF e da CPI mentiram à nação brasileira, que juraram amar e defender, a começar pelo dirigente máximo da ABIN.
Portanto, a ética é o derradeiro esteio sem o qual a Inteligência de Estado inescapavelmente demanda para o descontrole. Deve estar impregnada na alma dos dirigentes de serviços de inteligência e seus integrantes, como compromisso de honra para com a Pátria, rigorosamente consolidada no respectivo código de ética de inteligência próprio, e impiedosamente cobrada pela sociedade.
Sábias as palavras do coronel Walther Nicolai, chefe do serviço de inteligência do chanceler Bismarck, que declarou: "A Inteligência é um apanágio dos nobres; confiada a outros, desmorona". Sempre desmorona, pois somente os dotados de inabalável fortaleza ética e moral, cujo perfil se caracteriza sobretudo pelo exemplo, são dignos para o exercício da Inteligência. Que a sociedade brasileira não se esqueça desse importante aprendizado, pois na Inteligência há apenas duas categorias de profissionais: os corruptos e os que 'vão prá guerra'.
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