(Publicado no jornal Estado de Minas, em 04/05/09)
Quando um presidente da República, diante de graves ameaças e vulnerabilidades ao Estado democrático e à sociedade, determina a apuração rigorosa de sérias irregularidades, bem como o afastamento imediato do diretor-geral, do diretor-geral-adjunto e do diretor de contrainteligência, do principal serviço federal de inteligência nacional, trata-se, indubitavelmente, de uma situação gravíssima. O Brasil vive, atualmente, a maior e pior crise institucional de inteligência da sua história. As apurações realizadas pela chamada CPI dos Grampos e as conclusões apontadas no relatório do inquérito da Polícia Federal (PF) sobre as ações patrocinadas pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), em sua participação na Operação Satiagraha, comprovam não apenas o cometimento de práticas deletérias denominadas de “ações paralegais” pelo presidente da CPI, como revelam o total descontrole do Estado brasileiro sobre a Abin. A Abin, em apenas nove anos de existência, se caracteriza por uma sucessão de escândalos e crises institucionais de âmbitos nacional e internacional, cujas sérias consequências já implicaram, nesse curto período, a nomeação e exoneração de cinco diretores-gerais, estando agora a sociedade brasileira assistindo à nomeação do sexto diretor-geral da instituição em menos de 10 anos de existência. O alcance da atual crise de inteligência assume proporções mais alarmantes em nível nacional porquanto a Abin é também o órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), cuja interação com uma miríade de agências de inteligência nacionais é realizada a pretexto de uma “cooperação sigilosa de troca de informações”, que as investigações da PF revelaram ocorrer de forma oficiosa e clandestina. Um festival de ilegalidades e mentiras é o que se apurou sobre a participação da Abin na Operação Satiagraha. Constatou-se a atuação ilegítima de quase uma centena de agentes, muitos dos quais completamente despreparados, com emprego de material e recursos financeiros, aquiescida pelo seu diretor-geral, que, perante a CPI dos Grampos, afirmou o contrário. Diversos dirigentes foram desmascarados em suas inverdades, como o diretor de contrainteligência e o chefe de operações da superintendência do Rio de Janeiro. Foi descoberta a introdução clandestina de agentes dentro das instalações do serviço de inteligência da PF, utilizando-se de senhas de terceiros para acessar interceptações telefônicas sigilosas, protegidas pelo sistema Guardião. Esse é o quadro que está minuciosamente detalhado no relatório do inquérito da PF, confirmado por irrefutáveis elementos de autoria e materialidade, inclusive com o envolvimento da Diretoria de Operações de Inteligência (DOI) – setor mais sigiloso e sensível da Abin –, cujo próprio diretor teve participação pessoal em ações que estão diretamente vinculadas ao vazamento de informações sigilosas. Diante dessa grave conjuntura, mais importante que a nomeação do próximo ex-diretor da Abin é o real enfrentamento das verdadeiras origens dessa problemática e o combate aos verdadeiros inimigos do Estado. O ensejo da elaboração da nova política nacional de inteligência, determinada pelo presidente da República, é a excelente oportunidade para a sociedade brasileira enfrentar a premência de intervenções cirúrgicas urgentes na estruturação da inteligência de Estado do país, notadamente na Abin, cuja “enfermidade” já ameaça a “saúde” dos poderes da República. Essa missão extrapola as atribuições do Poder Executivo, requerendo o concurso de toda a estrutura estatal, especialmente da Comissão de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso Nacional (CCAI), do Poder Judiciário, do Ministério Público Federal, dos ministérios públicos estaduais, do Tribunal de Contas da União (TCU), dos tribunais de Contas dos estados, do Poder Legislativo, da Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Poder Executivo e da Secretaria de Controle Interno da Presidência da República (Ciset). Parafraseando uma citação supostamente atribuída ao general Goubery do Couto e Silva, que teria afirmado “não imaginar o monstro que havia criado”, ao se referir ao extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), do qual foi um dos principais idealizadores, essa afirmação revela-se mais aplicável à Abin do que supomos. A degeneração dessa instituição, nascida no contexto democrático, vem sendo a olhos vistos demonstrada, seja pelo recurso a métodos ilegais de investigação, seja pelo desvio de sua finalidade institucional. Tal estado de coisas põe em risco o fim maior a que se destina o órgão máximo da inteligência de Estado no país, e, por que não dizer, o próprio país. Ou abre-se um debate público sobre essa questão ou a história nos cobrará um alto preço por nossa omissão.
(André Soares - Mestre em operações militares, consultor em inteligência)
Saudações André Soares.
ResponderExcluirParabéns pela iniciativa de tratar de assuntos muito pouco conhecidos do público brasileiro.