O Globo 01/09/09
Arnaldo Jabor
A elite pensante do país está de boca fechada
Por que o Aluízio Mercadante não manteve sua “irrevogabilidade”? Porque não teve coragem de enfrentar o Lula.
Mas por que não teve? A razão é a mesma que acomete muitos intelectuais “não petistas”: o Lula é “inatacável”.
Poucas pessoas têm coragem de contestar um ex-operário, aparentemente honesto, que muito sofreu para chegar aonde está. Além disso, Lula tem a cor do que seria a pátina da “revolução”, de uma “justiça social” vaga.
Por isso, me pergunto: será que os intelectuais não veem que nossa democracia conquistada há vinte anos está sendo roída pelos ratos da velha política? Não se trata (nem estou pedindo) de esculachar o presidente.
Lula tem várias qualidades, mas está usando só os seus defeitos: autoritarismo de Ibope alto, “lua de mel consigo mesmo”, confusão conceitual no ensopadinho ideológico do “lulismo” (discursos populistas e práticas oportunistas), ausência de um plano concreto, além do virtual e midiático PAC, alianças com os mais sujos para “governar” e ficando incapaz de fazê-lo pelas mesmas alianças que agora o manietam.
A atitude de Lula de se colocar “acima” da política como sendo “coisa menor” é uma sopa no mel para corruptos e vagabundos. No dia seguinte à absolvição do Sarney, o PMDB não deu trégua e já quer mais emendas orçamentárias, no peito.
Alguns intelectuais ficam “angustiadinhos”: “Ah... eu tinha um sonho... que se esfumou...” — choram os militantes imaginários, e nada fazem.
A covardia intelectual é grande. Há o medo de ser chamado de reacionário ou careta. Todos continuam com a mania de que são “radicais” (como ser, por exemplo, corintiano doente).
Continuam ativos os três tipos exemplares de “radicais”: os radicais de cervejaria, os radicais de enfermaria e os radicais de estrebaria.
Os frívolos, os burros e os loucos. Uns bebem e falam em revolução; outros zurram, e os terceiros alucinam. Eles padecem da doença herdada (resistente a antibióticos) de um voluntarismo com ecos stalinistas, cruzada com o germe do sindicalismo oportunista. Para eles, “administrar” é visto como ato menor, até meio reacionário, pois administrar é manter, preservar — coisa de capitalistas.
Lula é um dogma. Diante dele, abole-se o sentido crítico. É como desconfiar da virgindade de Nossa Senhora. Fácil era esculhambar FH.
Volto a dizer: não quero que “demonizem” o Lula; pelo contrário, quero até que o ajudem nesta armadilha em que o país (e ele) caiu por sua atitude.
Lula viaja nesta maionese ambivalente (que até o “The Economist” denuncia) de leninismo sindicalista com apresentador de TV, um mix de Waldick Soriano com Getúlio.
Com essas alianças, Lula revigorou o pior problema do país: o patrimonialismo endêmico que tinha diminuído depois de FH. Temos agora uma espécie de “patrimonialismo de Estado”: boquinhas para pelegos (200 mil) e pernas abertas para o PMDB.
Estamos diante de um momento histórico gravíssimo, com os dois tumores gêmeos de nossa doença: a direita do atraso e a esquerda do atraso.
Como escreveu Bobbio, se há uma coisa que une esquerda e direita, é o ódio à democracia.
Esta crise é tão sintomática, tão exemplar para a mudança do país, que não podia ser desperdiçada pelos pensadores livres. É uma tomografia que mostra as glândulas, as secreções do corpo brasileiro — um diagnóstico completo. Este espasmo de verdade, esta brutal explosão de nossas vísceras, talvez seja perdido, porque as manobras do atraso de direita e do atraso de esquerda trabalham unidas para que a mentira vença.
E intelectuais sérios, artistas famosos e celebridades não abrem a boca. Onde estão os velhos manifestos de que eles gostavam tanto? Quando haverá manifestações da sociedade para confrontar a ópera-bufa que rola à nossa frente? As denúncias foram todas provadas, a imprensa denuncia e é ameaçada, enquanto os canalhas se sentem protegidos pelo labirinto do Judiciário. E não se trata mais de mensalões e mensalinhos, netinhos ou netinhas nomeadas, trata-se da implosão de nossas instituições republicanas, feita pelos próprios donos do poder.
O Brasil está entregue à mentira oficializada, manipulada por governo e Legislativo, num jogo de barata-voa com as denúncias, provas cabais, evidências solares, tudo diante dos olhos impotentes da opinião pública. E homens notáveis do país estão calados. Quando se manifestam isoladamente, são apenas suspiros esparsos, folhas de outono, lamentos doloridos...
Mudar é trair para os tais “radicais” dos três tipos. Ninguém tem coragem de admitir a invencibilidade do capitalismo global, com benesses e horrores (como a vida). Ninguém abre mão da fé em utopias ridículas — o presente é chato, dá trabalho, preferem um futuro imaginário.
Não admitem que um “choque de capitalismo” seria a única bomba a arrebentar a casamata paralítica do Estado inchado, gastador e ineficiente, e que isso seria muito mais progressista que velhas ideias finalistas, esse “platonismo” de galinheiro sobre o “todo, o futuro, o ser, a História”.
Eles não abrem mão dessa “elegância” filosófica ridícula. Só pensam no que deveria ser e não enfrentam o que inexoravelmente é. Preferem a paz de suas apostilas encardidas. Há uma grande indigência teórica sobre o Brasil contemporâneo.
Ignoram a estrutura colonial e preferem continuar com teses mortas.
O mito do messianismo é muito forte, com sua origem religiosa. Não entendem que o homem de “esquerda” de hoje tem que perder fé e esperança, e que o verdadeiro progressista tem de partir do não sabido e inventar caminhos.
Só uma força plebiscitária poderá mover esta grande pizza envenenada.
Por isso, pergunto, como os antigos: Quando haverá uma manifestação séria da opinião pública? Uma ação continuada de notáveis da República para impedir este jogo de carniça entre os três poderes, essa vergonha que humilha o Brasil? Vamos continuar de braços cruzados?
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