O Globo 28/07/09
Arnaldo Jabor
A verdade do país aparece sob a lama
O Brasil mudou dentro de nós — muito.
Não falo só da História recente. Falo de nossa vida interior desde 1964 até hoje. Falo de bobagens, detritos, coloquialismos, escândalos que criaram uma mutação silenciosa em nossas cabeças.
Antes de 64, o ritmo das coisas tinha a linearidade de um filme acadêmico. Para nós, jovens de esquerda, o país era ameaçado por uma sinistra “direita” — causa de todos os dramas.
Não sabíamos que éramos parte do problema.
Falávamos em “luta de classes”, mas não conhecíamos a violência da “reação”.
Dizíamos: “Nosso exército é democrático porque é de classe média, e a burguesia nacional é progressista. Não trairão Jango”. Nosso raciocínio era uma equação primitiva.
Nada descreve o choque da aparição de Castello Branco na capa da “Manchete”. Nunca ouvíramos falar daquele homenzinho fardado, feio como um ET. Rompeu-se em 64 o sonho de que as “ideias” mudariam o mundo. Dissolveuse o “futuro harmônico” de um socialismo imaginário.
Um general baixinho mandava em todos, acima das “sagradas massas”.
Aprendizado: a ignorância popular, a dureza das coisas, o acaso eram mais fortes que nossos ingênuos desejos. Fizemos, claro, um diagnostico “histórico”: “64 foi um golpe dado pelo conservadorismo das elites diante das massas surgidas na industrialização, com o apoio do imperialismo”. Tudo bem — mas foi muito mais que isso. Foi um golpe dado pela classe média apavorada, com medo de sua própria “esquerda”. Não havia “operários” no Brasil, antes de surgir a alegoria de Lula, para orgasmo dos intelectuais da Academia. Em 64, descobrimos que não havia “massas proletárias”.
Achávamos que íamos lutar contra fascistas e yankees e fomos vencidos por nossas tias. A adesão à 64 foi impressionante.
Nossos pais, primos, avós, todo mundo (descobrimos) era “de direita”. A derrota do janguismo foi coberta de ridículo. Houve um lado “bom” nisso: o pensamento político que flutuava em certezas teve que se rever. Perdêramos a inocência — surgiu a esquerda autocrítica que viria a fundar o PSDB, duas décadas depois. A ela se opôs, desde então, a esquerda ortodoxa (apoiada pela igreja idealista e acadêmicos metafísicos), que não renegou a antiga fé e desembarcou seus dogmas no PT.
Em 66, começaram as passeatas pela liberdade.
Antes do Ato no5 havia algum espaço de protestos, com uma vaga permissão de Castello e até do Costa e Silva, num populismo verde-oliva. Achávamos que a volta da liberdade resolveria tudo. A luta pela democracia nos cegou para o quebra-cabeças de um país maluco, que conheceríamos depois.
As manifestações de rua acabaram com a decretação do Ato Institucional no5, como um final de piada, com dona Iolanda Costa e Silva, nossa perua-Lady Macbeth berrando para o marido já lelé: “Fecha o Congresso, Arthur, fecha!”.
Em 68, um raio partiu a vida. A consciência nacional conheceu a morte. Não falo só da tortura ou da violência, mas da morte na alma.
Acabou a idéia de “povo unido”, e começou a época dos francos atiradores, dos guerrilheiros suicidas, soltos em paisagens vazias.
Quem não viveu de 69 a 73 não sabe o que é loucura, piração de cabeças. Saímos da ilusão para o desespero. De um lado, a morte heroica na guerrilha, do outro o “desbunde” na cultura arrasando as melhores mentes no LSD e no misticismo — e tudo cercado pela show da grana multinacional, criando o “milagre” brasileiro, jorrando yuppies endinheirados e dando ao povão a imagem de grande progresso, feito de Transamazônica, Itaipu e porrada.
Nem reforma agrária nem educação — somente a Copa de 70 e estatismo retumbante, financiado pela onda bancária internacional.
Em 72 começa a crise do petróleo mundial, provocando a tal “abertura” política de Geisel (não por acaso). A Opep ajudou na demanda de liberdade pois, sem petrodólares, a ditadura foi ruindo. À medida que a capacidade de endividamento diminuía, crescia o desejo de democracia. Quem ditava as regras? Os militares? Não: a marcha das coisas. Fomos aprisionados em 64 para contrair a imensa dívida externa que os bancos internacionais nos enfiaram pela goela e “libertados” em 85 para pagá-la. Assim, veio a democracia.
Todos se “uniram” no “amor à Pátria”, de Ulisses a Quércia, de Tancredo a João Alves, aquele anão do orçamento (lembram?). Houve a ingênua ilusão de que éramos “irmãos” contra o Mal autoritário dos militares. Tancredo morre na porta do Planalto, Sarney assume, e, depois, Collor.
Collor fez uma revolução contra si mesmo, expondo com seu narcisismo suicida o absurdo do sistema político sob as saias da “democracia”.
Sua loucura escancarada nos abriu os olhos.
Depois, por acaso, por uma paixão de Itamar, entrou FHC, que nos deu oito anos de vida real e racionalidade, odiado pela inveja de seus colegas da Academia e sabotado pela velha esquerda lotada no PT.
Depois dos oito anos tucanos, chegou Lula paz e amor, dominado pelos bolchevistas de Dirceu, até chegar o “libertador” Jefferson, o iluminista do “mensalão”, destruindo a “revolução da corrupção”.
Hoje, estamos aprendendo muito, e vejo, com um “desesperado otimismo”, a “sarneização” de Lula. O tsunami de políticos nordestinos em quadrilha tem nos ensinado muito sob a oligarquia patrimonialista que nos domina.
Sarney é um doutorado. Quem quiser entender esse homem vá ao Maranhão ver a miséria de um estado. E quem quiser entender o Brasil estude minuciosamente a vida de Sarney, de 66 até hoje. Explica o país.
A verdade do Brasil é coloquial, feita de pequenos ladrões, sujas alianças políticas, corrupção endêmica e incompetência administrativa.
Já sabemos que somos parte desta estupidez secular.
Prefiro nossa vergonha de hoje aos rostos iluminados dos jovens inocentes de minha geração.
Assumir a doença é o início da sabedoria.
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