Estado de São Paulo 20/07/09
Denis Lerrer Rosenfield
O Brasil tem vivido nos últimos anos, e particularmente nos últimos meses, uma invasão do que poderíamos chamar de politicamente correto. São Paulo encontra-se, agora, na iniciativa. Tal invasão vem acompanhada de uma série de medidas legais, sejam leis propriamente ditas, sejam atos administrativos como decretos, resoluções, portarias e instruções normativas que restringem cada vez mais a liberdade de escolha. O politicamente correto apresenta-se, então, como se fosse, moralmente falando, uma forma do bem que estaria enfrentando o mal, no caso, o mau comportamento. Tivemos, assim, uma avalancha de medidas contra o álcool e o fumo que são apresentadas como se fossem as expressões mesmas da virtude. Sua ampliação já é cogitada para vários alimentos considerados daninhos ao organismo, com diferentes graus de gorduras.
Importa ressaltar que o Estado patrocina essas medidas, impondo-as, de fato, aos cidadãos, como se pudesse arvorar-se em representante do bem, da virtude. O Estado arroga para si uma função que não deveria ser dele, pelo menos na perspectiva de cidadãos que exercem a sua liberdade de escolha, sendo, portanto, responsáveis por aquilo que fazem. O Estado termina por assumir uma função propriamente "ética", ditando aos cidadãos o que deve ou não ser feito, sendo esse dever seguido de medidas jurídicas, tornando obrigatórios tais comportamentos, sob pena de multas e punições em geral.
Nada disso, no entanto, é muito novo. Embora seja normalmente atribuída a uma moda americana com origem nos anos 50-60 do século passado, a partir de pesquisas correlacionando o hábito do fumo, do álcool, de determinados alimentos e de radiações de aparelhos a certas doenças como câncer, cardiorrespiratórias e outras, sua origem remonta à Alemanha nazista. A ciência médica durante o nazismo não se caracterizou só pelas aberrações cometidas nos campos de concentração, na eugenia, na eliminação de "doentes", do corpo e da alma, na discriminação racial, mas também por medidas que recomendavam - algumas obrigavam - aos cidadãos determinados comportamentos tidos pelos dirigentes nazistas como saudáveis para o corpo e a alma. Estava em questão aquilo mesmo que era considerado como devendo ser o bom alemão (sigo aqui o livro de Robert N. Proctor The Nazi War on Cancer, Princeton University Press, 1999).
Um slogan nazista utilizado sobretudo para os alimentos assim proclamava: "O seu corpo pertence à nação! O seu corpo pertence ao Führer! Você tem a obrigação de ser saudável! Alimento não é uma coisa privada."
Ora, dentro dessa lógica, se o corpo do indivíduo pertence à nação, ele pertence a seu dirigente máximo, o Führer, que sabe, em sua onisciência, o que é melhor para todos os cidadãos. O Führer encarna a sabedoria; os cidadãos, a ignorância. A obrigação é a primeira de suas virtudes e a única forma que lhes é reservada de escapar do vício. A saúde do corpo deixa de ser algo individual, objeto de preocupação própria de cada um, e torna-se uma política de Estado, devendo ser simplesmente seguida.
A propaganda nazista não cessava de apregoar a virtude de seus dirigentes, ressaltando que Hitler era antitabagista, enquanto seus inimigos, como Churchill, Roosevelt e Stalin, eram adeptos do fumo, o primeiro, de charutos e os outros dois, de cigarros. Mussolini e Franco eram também não-fumantes. O Führer, ademais, era vegetariano, só comia carne em raras ocasiões, e tampouco bebia. Churchill, seu grande adversário, era renomado tomador de uísque e champanhe em grandes doses. E também não era adepto do vegetarianismo.
Na perspectiva nazista, assinalada em sua propaganda, Hitler era um homem virtuoso, que se dedicava a combater o vício, enquanto os seus adversários eram capitalistas ou comunistas degenerados, frutos de uma civilização decadente. Tratava-se, portanto, para ele, de fazer um resgate da virtude, em contraposição aos que se dedicavam ao vício. Em linguagem contemporânea, diríamos que Hitler era politicamente correto, enquanto os seus inimigos eram libertinos da pior espécie, não propriamente humanos. Eram os representantes dos sub-humanos, embora costumasse reservar mais propriamente essa expressão aos judeus, ciganos, homossexuais e comunistas.
É interessante observar que o álcool e o fumo são considerados enquanto doenças, na verdade, vícios civilizatórios de uma sociedade decadente, de um capitalismo corruptor do corpo e da alma, formas de expressão a serem banidas de um "estilo de vida liberal". Ambos prejudicariam o desempenho no trabalho e a pureza do corpo, numa mistura de considerações sanitárias, trabalhistas, médicas e ideológicas. O tabaco, em particular, era tido como uma "praga", uma "epidemia", uma "bebedeira seca" e uma "masturbação do pulmão". Também era considerado um "veneno", uma forma do capitalismo (tobacco capitalism) e o "inimigo da paz mundial". O ato de fumar era associado à depravação sexual, ao comunismo, ao judaísmo, à África e aos negros degenerados.
A palavra câncer funcionava como uma espécie de metáfora daquilo que deveria ser eliminado, seja um câncer de pulmão, provocado pelo fumo, sejam os judeus, que deveriam ser exterminados. A metáfora do câncer funcionava como um substituto do mal, que exigiria medidas públicas de saneamento, tanto podendo estas se traduzir por medidas raciais, pelo eugenismo, quanto por iniciativas tidas por de saúde pública. Em todo caso, surge, nessas diferentes modalidades, a ideia da criminalização: do alcoolista, do fumante, do judeu, do cigano e do homossexual. Alguns poderiam ser tratados, outros simplesmente eliminados. Um dos mais proeminentes médicos nazistas, Hans Auler, professor em Berlim, considerava o regime nazista como anticancerígeno: "É uma sorte para os pacientes alemães de câncer que o Terceiro Reich estivesse ele mesmo fundado na conservação da saúde alemã."
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia
na UFRGS. E-mail: denisrosenfield@terra.com.br
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