Estado de Minas 15/07/09
Maria Clara Jost - Mestre em psicologia pela UFMG, preceptora do método ADI/TIP
Trair vem do latim tradere, que significa entregar. No entanto, é comumente associado a enganar ou denunciar, conceitos que envolvem um julgamento negativo do autor do ato. Quando se refere à infidelidade, causa invariavelmente sofrimento, revolta, sensação de abandono e menos-valia e gera um estado de desconfiança naquele que foi traído. De qualquer forma, é um ato especificamente humano. Na sociedade contemporânea, os valores são ordenados segundo as regras do mercado: as leis econômicas se estendem para as relações humanas e as pessoas são usadas como bens de consumo. Nesse contexto, o sujeito humano serviria somente enquanto útil e poderia ser descartado sem maiores problemas de consciência, pois o desejo de ser feliz justificaria qualquer ação contra o outro. Dessa forma, os valores fundamentais para a saúde física, psíquica e existencial do ser humano são literalmente traídos e distorcidos. A pessoa humana é coisificada, as relações afetivas são destruídas e banalizadas. Quem traiu e quem foi traído sofre com o esvaziamento da afetividade, a desorientação e medo diante das pessoas e do mundo. Perde o sentido da própria existência, o “para que” viver e o “como” viver. Posiciona-se como vítima de quem amou, culpa o mundo por seu sofrimento, destrói a si mesmo e a todos que o circundam. Se é o traidor, se julga por trair quem o amava e se torna, aos próprios olhos, um monstro não merecedor de amor, o que o leva, contraditoriamente, a trair mais. Trair, portanto, está ligado ao desrespeito daquele que acredita, leva à destruição da esperança e descrença no amor, transformado em uma sensação imediata e efêmera, que não cria raízes. Ou seja, o ser humano perde a capacidade de se envolver em um projeto maior, que ultrapasse o valor de sua vida. Animaliza-se aquilo que é mais essencialmente humano. E dá-se a isso o nome de modernidade? O grande escritor russo Vassili Vassilievitch Rozanov escreveu que “das grandes traições iniciam-se grandes renovações”. Provavelmente, ele se referia à ideia de que a traição destruiria o antigo para construir algo novo. Mas pode-se destruir alguém em nome de um objetivo, uma ideologia por mais nobre que essa possa ser? Querer a nossa felicidade e bem-estar seria motivo para impossibilitar a felicidade do outro, jogando-o na prisão do ressentimento? Podemos mudar de ideia, de projeto; avaliar ou até romper relacionamentos. No entanto, é importante nos posicionarmos criticamente em relação à falta de cuidado da sociedade com o bem mais precioso que o ser humano tem dentro de si: a capacidade da confiança e a capacidade de envolvimento construtivo com o outro. A perda dessas capacidades, afirmam respectivamente E. Erikson e M. Winnicott, pode levar uma pessoa à criminalidade, à destruição de si e do outro, na ilusão de que a vingança apaziguaria o desespero pelo desamor de que se julga vítima. Repete-se, todavia, o fenômeno, em um círculo pernicioso de sofrimento e culpa. Pode-se usar a razão ou apelar para a educação e cultura para justificar os erros cometidos. Apesar disso e contra todos os argumentos possíveis em uma sociedade hedonista e egocêntrica, o ser do homem é estruturado sobre a busca de experiências engrandecedoras ligadas ao bem, à justiça, ao amar e ao ser amado. Ao trair a si mesmo, em nome de sua aparente felicidade, fracassa na busca que o fundamenta e se frustra na tentativa de se realizar naquilo que não permite a realização do ser enquanto humano. Na ausência de respostas, se enrosca em uma teia de mentiras e traições sucessivas, atropela quem o ama, procurando justificativas para seus atos e se destruindo em cada nova tentativa de ser amado. De fato, o grande anseio do coração humano é a certeza de ser amado. Contudo, a resposta só é obtida quando nos abrimos para construir relações de amor e descobrimos que somos capazes de amar. Se é assim que nos julgamos, permitimo-nos pensar que também somos merecedores do amor e da confiança daqueles a quem, um dia, nos propusemos a amar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Dê sua opinião, livremente, respeitando os limites da legalidade e da ética.