Estado de Minas 21/07/09
Com grupos em atuação há mais de 30 anos na Europa, o teatro físico ganha espaço no Brasil e precisa atrair público e novos artistas sem fazer concessões
Fernanda Lippi
A propagação cultural no Brasil, especialmente no que se refere a novas tendências artísticas, não é uma tarefa muito fácil. Apesar das dimensões continentais e a multiplicidade cultural, nosso país ainda é carente de incentivo à criação de redes de intercâmbio para estimular a inovação artística, a cooperação e a troca de experiências culturais. Quando o assunto é teatro físico então, a situação não é muito diferente. A dimensão dessa arte, que teve origem na Inglaterra, é mesmo difícil de ser desdobrada em noções porque não há teorias, deixando assim uma espécie de mistério sobre como os elementos da condição humana são aflorados. Alguns dos artistas de grupos ingleses mais influentes, como Theatre de Complicité, destaque há mais de 30 anos; Kaos Theatre, Volcano Theatre; Improbable Theatre; e DV8 Physical Theatre – primeira companhia de dança a utilizar a expressão teatro físico conscientemente a partir de 1986 – afirmam que teatro físico é uma expressão grotowskiana. Jerry Grotowski, por sua vez, foi um diretor de teatro polonês e figura central no cenário do século 20, principalmente no teatro experimental ou de vanguarda. Essa manifestação artística chegou ao Brasil para encontrar uma plateia mais desconfiada, por assim dizer, e, por vezes, conservadora. Um público que ainda está adquirindo o hábito de frequentar o teatro e se acostumando com uma efervescência cultural em cenário nacional. Assim como em relação a outras manifestações que não sejam tradicionais, ainda existe certa resistência, mas também uma curiosidade aguçada. Para começar, ser rotulado como teatro físico nunca foi uma das ambições, uma vez que a arte reúne diversas outras formas de expressão: música, vídeo, cinema, artes plásticas, arquitetura. Talvez, isso contribua para dificultar o entendimento e a apreciação. Por outro lado, as ferramentas de criação do teatro físico também podem dificultar a compreensão. O espetáculo ocorre muito mais por meio do corpo do que da mente. É um impulso somático que, justamente pela escolha, se torna mais poderoso do que o impulso cerebral. Para ser mais clara, é como se, levando em conta os desejos da mente, a pessoa soubesse o que precisa ser feito em um determinado momento, mas opta por fazer diferente, deixando a corporeidade falar mais alto. O teatro físico não é tão popular devido a seu aspecto contestador. As peças abordam o que muitos não querem ouvir, revelando os pontos fracos da sociedade e permitindo que tudo seja sentido e refletido. Essa forma de expressão desafia a naturalidade das coisas e vai além do desejo de simplesmente fazer teatro. Utiliza imagens mais subjetivas e menos literais e, muitas vezes, abre mão da técnica para recriar tendências ao seu modo. Vez ou outra, confunde-se a arte com o teatro experimental, o que definitivamente ela não é. Os grupos que se aventuram no experimental se sentem à vontade para tentar de tudo e fazem disso uma escolha, uma opção declarada. No teatro físico é diferente, pois, apesar de não ser rotulado, a intenção é bem clara: extrair a total expressão artística do núcleo instintivo, numa síntese de formas da arte. Enraizado na colaboração e dedicado a descobrir uma imaginação coletiva, cria um trabalho que abrange o visual e o visceral. Combina riscos, desejo e organização improvisada, compondo um trabalho dramático com impacto sensorial e camadas de significado. Nesse contexto, o grande desafio é alcançar a diversidade de público, propagando a tendência e ganhando plateia disposta a conhecer novas áreas culturais. O teatro físico impacta as pessoas e é exatamente essa sua proposta. É uma arte que representa as multifaces do corpo, que se revela como intenção, acontecimento e resultado do projeto. Em cada espectador, uma reação. Aplauso, frenesi, inquietação, perplexidade. É nesse momento que o trabalho se encerra, quando se manifesta em um outro corpo de forma singular. Portas abertas O cenário do teatro físico no Brasil muito tem a ver com o próprio contexto cultural nacional. Na Europa, por exemplo, mais especificamente em Londres, independentemente do currículo de um grupo, as portas estão sempre abertas. As companhias interagem em nome da arte e não se prendem a patrocínios. Esse movimento dá força a iniciantes e ainda mais solidez àquelas reconhecidas e premiadas. Um grande diferencial britânico, em contraponto ao Brasil, é que os artistas que lá se apresentam estão acostumados a trabalhar como freelancer. Eles percorrem cidades em função de algum projeto e retornam para suas casas, para, posteriormente, se aventurarem em outras iniciativas. O Brasil é muito grande, tem uma cultura mesclada, mas cada estado é quase um país se pensarmos em disseminação cultural. Os artistas trabalham com uma zona fronteiriça que impede a criação de uma rede de network e, inclusive, de grupos independentes. Essa peculiaridade dificulta a união e a promoção de eventos com pretensões nacionais. Também observamos no Brasil a motivação pela qual os estudantes se tornam artistas. A grande maioria escolhe a “profissão” como um meio e não uma opção de vida. Não quer dizer que estejam errados, entretanto, é mais fácil se sentirem frustrados quando não houver mercado e suscetíveis a abandonar quaisquer ideologias em troca de um pouco de sucesso e reconhecimento. Quando nada, abrem mão de projetos alternativos para trilhar um caminho mais comercial. Obviamente, não é somente no Brasil que isso ocorre. Contudo, existem lugares onde as pessoas são mais bem preparadas pelas universidades e mais conscientes de suas escolhas. Essas mesmas pessoas trabalham com afinco numa ideia e se adaptam aos limites financeiros. E, se essa não é a solução, procuram parcerias ou se dissolvem para integrar outras companhias em projetos paralelos. É interessante observar que, apesar de a Inglaterra passar por uma crise financeira difícil, os artistas continuam fazendo teatro e o público continua frequentando-o. Mais do que isso, as pessoas lotam os lugares, independentemente do dia e horário. Sim, existe uma diferença colossal entre o Brasil e a Europa, em todos os aspectos. Mas isso não impede que os grupos brasileiros se inspirem na dinâmica europeia, pautada pelo incentivo e estímulo à cultura, para desenvolver o seu trabalho e evidenciar todo o potencial artístico da nossa nação. Fernanda Lippi é bailarina, coreógrafa e diretora da Cia. Zikzira de Teatro Físico
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