Estado de São Paulo 23/08/09
Seminário internacional discutirá formas de buscar esclarecimentos sobre crimes contra os direitos humanos
Roldão Arruda
No dia 22 de agosto de 1979, uma quarta-feira, o Congresso Nacional aprovou a Lei 6.683 - conhecida como a Lei da Anistia. O fato foi comemorado como uma das vitórias mais importantes dos movimentos democráticos contra a ditadura imposta ao País com o golpe militar de 1964. De uma só tacada ela beneficiou cerca de 100 presos políticos, 150 banidos e 2.000 pessoas que viviam no exílio por causa de suas ideias políticas.
Nos anos seguintes, porém, a lei deixou de ser comemorada. E hoje, no 30º aniversário da data, seu texto enfrenta uma carga de críticas e contestações nunca vistas antes. Já se articula até a criação de uma comissão da verdade, com a tarefa de esclarecer os crimes praticados por agentes dos aparelhos de repressão, como sequestros, torturas, mortes e desaparecimento de opositores da ditadura militar. Trata-se da mais ampla e mais bem elaborada tentativa de se pôr abaixo a ideia de que a anistia beneficiou não só os perseguidos, mas também os perseguidores.
A primeira ação nessa direção acontece em outubro. Será um seminário internacional, na USP, em São Paulo, sobre erros e fracassos de comissões de verdade já realizadas em outras partes do mundo.
O governo federal, que ajudará a patrocinar o encontro, pretende tirar dali as diretrizes para a instalação da comissão brasileira. Segundo explicações da Secretaria Especial de Direitos Humanos, o governo segue recomendações da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em dezembro, em Brasília. No texto final do encontro aparece a recomendação para que se instale a comissão.
Investigações de comissões da verdade tendem a apontar os nomes dos responsáveis por violações de direitos humanos. No Chile e na Argentina, países que também enfrentaram ditaduras militares e nos quais funcionaram comissões semelhantes, acusados foram a julgamento e vários deles acabaram presos.
O que está jogo é um trecho do primeiro artigo da lei, que diz que a anistia é concedida aos que "cometeram crimes políticos ou conexos com estes". O cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, que atua desde 1995 como relator da ONU na área de direitos humanos, considera "patética" a ideia de que a palavra "conexo" significou a anistia para quem violou direitos humanos.
Pinheiro é o principal articulador do seminário da USP sobre comissões de verdade. Na semana passada, em entrevista ao Estado, ele associou as torturas e execuções sumárias que são praticadas por policiais civis e militares ainda hoje, em pleno regime democrático, à falta de um acerto de contas com a tortura e as execuções ocorridas na ditadura.
"Não existe em todo o mundo, nos países democráticos, uma polícia que mate tanto, cometa tantas execuções sumárias quanto a do Rio", assinalou Pinheiro. "Estou convencido de que, se não houver um acerto de contas, com a reconstituição da verdade sobre os crimes da ditadura, isso vai continuar acontecendo."
Para o especialista, não houve anistia para dois lados, porque só existia um lado, o dos cidadãos que, submetidos a um regime autoritário, se rebelaram, cometendo os chamados crimes políticos. A lei, de acordo com sua concepção, beneficiou esse grupo e não "os agentes do Estado repressor". Outra questão fundamental, segundo o ponto de vista do estudioso, é que a ideia, aceita pela Justiça no Brasil, de que a Lei de Anistia atingiu também os violadores de direitos humanos implica a aceitação da autoanistia - que é inaceitável nas convenções internacionais das quais o Brasil é signatário.
No ato público que comemorou ontem os 30 anos da aprovação da Lei da Anistia, no Rio, o ministro da Justiça, Tarso Genro, pediu que o Supremo Tribunal Federal julgue procedente a ação da Ordem dos Advogados do Brasil, que reinterpreta a lei de 1979, permitindo o julgamento de militares por tortura.
Após o ato, no qual o governo voltou a pedir desculpas aos presos, mortos, desaparecidos e torturados pelo regime militar, Tarso disse apoiar a criação de uma comissão de verdade. "Não estamos pedindo que os torturadores sejam torturados. O que pedimos é que sejam julgados e que o que fizeram seja exposto", disse.
COLABOROU FABIANA CIMIERI
''Terroristas assaltavam e matavam''
O delegado de polícia Carlos Alberto Augusto, mais conhecido como Carteira Preta, trabalhou durante quase nove em órgãos de repressão política durante o regime militar. Ele contesta a ideia de punição para os agentes do Estado. "Os terroristas assaltavam e matavam, como bandidos comuns, e foram anistiados. Por essa ótica, os assaltantes de bancos também deveriam ser anistiados."
Augusto também alega que o País estava em guerra. "Defendi e defendo minha pátria."
Ata secreta registrou discurso de Figueiredo
Wilson Tosta, RIO
Às 10h05 de 27 de junho de 1979, o presidente João Figueiredo, que seria o último do regime militar instaurado pelo golpe de 31 de março de 1964, reuniu um dos órgãos máximos da ditadura para um ato que seria parte do processo que acabaria por extingui-la. Em encontro do Conselho de Segurança Nacional no Palácio do Planalto, Figueiredo anunciou aos ministros e aos chefes dos Estados-Maiores da Marinha, do Exército e da Aeronáutica o que já se sabia: enviaria um projeto de anistia ao Congresso, que controlava. Em tom conciliador, sintomático após a derrota nas eleições de 1978, elogiou a chamada Revolução de 64 e antecipou a decisão.
"A concessão de anistia é sempre um ato unilateral de poder, pressupõe ou enseja o desarmamento dos espíritos, cria oportunidade para a convivência democrática dos contrários, ideias, partidos, pessoas", pregou o general presidente. "A anistia, ainda, amplia o campo de atuação política. Como em todos os fatos históricos, há sempre um momento propício a concedê-la."
No discurso, registrado na ata secreta do CSN, Figueiredo disse que o projeto abrangeria todos os crimes políticos e conexos cometidos de 2 de setembro de 1961 a 31 de dezembro de 1978. Funcionários públicos afastados poderiam voltar à atividade, dependendo do interesse da administração.
Os afastados por improbidade, porém, não seriam perdoados. Também seriam excluídos condenados por terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. "A ação, no caso, não é contra o governo ou o regime, mas contra a humanidade", disse.
O tom conciliador difere muito do registrado em outras atas do CSN. No dia 1º de abril de 1976, ainda no governo Ernesto Geisel, ao pedir a cassação do líder oposicionista Lysaneas Maciel, por ter discursado contra a ditadura, o ministro da Justiça, Armando Falcão, disse: "Não tem a menor possibilidade de conviver com o regime revolucionário, que não aceita e até subversivamente faz por derrubar."
Militares ocuparam galerias
Sessão de votação foi uma das mais tumultuadas da história do Congresso
Denise Madueño, BRASÍLIA
Jovens militares sem uniforme, mas facilmente identificados pelo corte de cabelo, ocupavam quase a totalidade das cadeiras da galeria do plenário da Câmara quando, às 7 horas do dia 22 de agosto de 1979, as portas do Congresso foram abertas para a sessão de votação da Lei da Anistia. O objetivo era impedir que os grupos de militantes dos movimentos pela anistia tomassem conta do lugar. O então ministro da Justiça, Petrônio Portela, declarara no dia anterior que o governo usaria toda a sua influência junto à Arena para impedir que a anistia fosse ampliada além dos limites contidos no projeto preparado pelo Palácio do Planalto. O ministro das Comunicações, Said Faraht, fizera coro a ele, afirmando que o governo já havia "transigido no limite".
Foi nesse cenário e com tal clima de disputa que deputados e senadores chegaram ao Congresso para uma das sessões mais tumultuadas da história do Legislativo. Durante oito horas de sessão, os parlamentares se envolveram em bate-boca e até em empurra-empurra. Vaias e aplausos foram comuns.
Apenas um pequeno grupo de manifestantes favoráveis à proposta de anistia ampla, geral e irrestrita conseguiu chegar ao plenário, tomado pelos militares. Mas foi o bastante para algumas manifestações barulhentas. Em mais de um momento eles foram saudados com gestos obscenos que partiam de parlamentares governistas.
Na sessão de discussão do projeto, na véspera, o clima já havia sido de tensão. Enquanto parlamentares discutiam a proposta no plenário, do lado de fora do Congresso, uma manifestação pela anistia ampla era dissolvida com bombas de gás. No Rio e em São Paulo, presos políticos estavam em greve de fome.
No dia da votação, a maior preocupação do MDB, o partido de oposição consentida, era ampliar a abrangência da anistia - como apurou o Estado em pesquisa nos documentos da época recolhidos nos arquivos da biblioteca da Câmara e por meio de relatos de parlamentares que participaram da sessão.
O MDB, com o apoio de diversas entidades, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e movimentos e comitês de anistia espalhados por todo o País, buscava a anistia ampla, geral e irrestrita. O governo não aceitava, porém, estender o benefício aos presos políticos que haviam sido condenados pela prática de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal, também chamados de crimes de sangue.
Com o País sob a ditadura militar, o partido de sustentação do governo, Arena, era amplamente majoritário. Havia senadores biônicos, nomeados e sem votos, e o MDB, única legenda de oposição com existência permitida, não tinha número suficiente para impor qualquer resultado nas votações. As negociações entre Arena e MDB foram intensas durante a própria sessão.
A derrota do projeto da oposição já era prevista, mas o MDB ainda tentava ampliar a anistia proposta pelo projeto do então presidente João Baptista Figueiredo (1918-1999), apoiando uma emenda apresentada pelo arenista Djalma Marinho (RN). Uma vez que a emenda ampliava a anistia, o MDB pediu que o governo encampasse a proposta com apoio da oposição. O então presidente da Arena, José Sarney, no entanto, se negou a atender ao pedido do presidente do MDB, Ulysses Guimarães.
O projeto do presidente Figueiredo foi aprovado em votação simbólica, pelos líderes dos dois partidos. A emenda de Marinho foi submetida a votação nominal depois de a oposição conseguir superar uma manobra feita pelo então deputado Edison Lobão (Arena-MA), atual ministro de Minas e Energia, com o objetivo de evitar que os parlamentares registrassem seus votos para não se exporem à opinião pública.
A emenda de Marinho foi rejeitada por 206 votos, todos de deputados da Arena, contra 202. Além de deputados do MDB, votaram a favor da emenda 15 deputados arenistas. Com a derrota na Câmara, a proposta não chegou a ser submetida a votação pelos senadores na sessão conjunta do Congresso.
MILITARES
Parlamentares que acompanharam a tramitação do projeto avaliam que a questão da anistia para os torturadores permeou todas as discussões no Congresso. "No ambiente político da época, ficou claro que todos estavam anistiados. Era isso ou nada", afirmou o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), um dos parlamentares do MDB que integrou a comissão especial mista criada para discutir o projeto no Congresso.
Miro estava na sessão do dia 22 de agosto de 1979. No contexto da ditadura, lembra o deputado, havia uma corrente entre os militares que queria fazer a abertura política, enquanto outra tentava impor uma linha mais dura ao governo. "Uma derrota na votação da anistia seria uma vitória para a corrente mais radical da direita", afirma o pedetista.
De acordo com o senador Pedro Simon (PMDB), que acompanhou os debates, ao lado de Ulysses Guimarães, também na oposição democrática houve dificuldades quanto à definição de um projeto mais amplo de anistia. Ele conta que, numa certa altura das negociações, exilados influentes e já de malas prontas para voltar ao Brasil, começaram a exigir que se aprovasse o projeto do governo - e que depois se discutissem formas de ampliá-lo.
O senador não citou nomes, mas um dos tais políticos influentes que já estavam prontos para retornar era Leonel Brizola. No dia 6 de setembro daquele ano ele desembarcou em São Borja, no Rio Grande do Sul.
COLABOROU ROLDÃO ARRUDA
Anistiados estão hoje no governo
Franklin Martins, Dilma Rousseff e Carlos Minc foram beneficiados
Marcelo de Moraes, BRASÍLIA
Trinta anos depois da adoção da Lei de Anistia, uma geração de integrantes dos grupos de esquerda que combateram o regime militar (1964-1985) ocupa hoje espaços importantes dentro do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Alguns, como os ministros do Meio Ambiente, Carlos Minc, e da Secretaria de Comunicação, Franklin Martins, puderam retornar do exílio graças à lei.
Outros, como a ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, que foi presa e torturada por conta de suas atividades clandestinas, não chegaram a ir para o exílio. Mas somente com a anistia puderam voltar às atividades normais.
Mesmo depois de três décadas, a aprovação da Lei de Anistia permanece viva na lembrança de quem pôde se beneficiar dela. Morando em Lisboa, na época, o ministro Carlos Minc lembra que foi avisado da notícia por um jornalista português. "Em Portugal, tínhamos um comitê de anistia, com a participação de exilados, artistas e políticos locais importantes, como Mário Soares (ex-presidente e ex-primeiro ministro)."
Para Minc, a anistia encerraria um período de exílio de nove anos, já que partira do Brasil em junho de 1970, com os outros 39 militantes presos pelo governo militar em troca da libertação do embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, sequestrado numa ação da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e da Ação Libertadora Nacional (ALN).
Outros integrantes do governo foram favorecidos pela anistia em condições mais adversas. Em agosto de 1979, o atual presidente da Agência Nacional de Petróleo (ANP), Haroldo Lima, estava preso na Bahia, por causa de sua militância clandestina no PC do B.E naqueles dias, na penitenciária Lemos de Brito, em Salvador, ele viveu momentos de tensão semelhantes aos do período de clandestinidade, porque ajudava na preparação da fuga de Theodomiro Romeiro - outro preso político, que não seria beneficiado pela anistia.
Theodomiro fugiu e foi para o exterior cinco dias antes da votação da lei - que beneficiou Haroldo Lima.
''Foi ato de vontade de Figueiredo''
Entrevista - Danilo Venturini: general; ex-chefe do Conselho de Segurança Nacional, Danilo Venturini nega que presidente tenha sido pressionado
Tânia Monteiro, BRASÍLIA
Mesmo antes de assumir o governo, o general João Baptista Figueiredo já tinha uma obsessão: aprovar a Lei de Anistia para resgatar seu passado. Figueiredo não se conformava em ter sido "órfão de pai vivo", como se autointitulava, já que seu pai foi perseguido na ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas, e passou cinco anos preso, além de ter sido exilado. A revelação foi feita pelo general Danilo Venturini, ex-chefe do Conselho de Segurança Nacional, o homem que guardava o "arquivo dos punidos" pelo regime militar, no governo do presidente Figueiredo, e que participou dos trabalhos de elaboração da lei, ao lado do então ministro da Justiça, Petrônio Portela.
No governo, quem idealizou a emenda da anistia?
O Figueiredo, antes de assumir o governo, em março de 79, já externou o seu pensamento e já pensava na Lei de Anistia porque ele foi, como se intitulava, órfão de pai vivo. Ele queria uma anistia ampla, geral e irrestrita e não se cansava de repetir isso. Não se conformava com o fato de seu pai ter passado cinco anos preso e de ter sido exilado. Figueiredo não se cansava de repetir que "lugar de brasileiro é no Brasil".
Houve pressão sobre o presidente?
Não teve nenhuma pressão. Nem do Congresso nem de nenhum outro setor. Era um ato de sua vontade. Tanto isso é verdade que ele assumiu o governo no dia 15 de março de 1979 e no dia 25 de junho anunciou o texto que estava sendo encaminhado ao Congresso em uma reunião do seu ministério.
Não houve a chamada ampla negociação?
O Figueiredo atribuiu ao ministro Petrônio Portela o encargo de ouvir a oposição. Quando apresentávamos um objetivo a conquistar, já sabíamos o que o outro lado pensava.
E os militares?
Todos os ministros militares, Maximiano da Fonseca (Marinha), Délio Jardim de Mattos (Aeronáutica) e Walter Pires (Exército), endossaram a posição do Figueiredo.
Havia algum temor?
Havia o receio de que a volta de líderes radicais da oposição pudesse conduzir um projeto contrário ao projeto de abertura. Os três ícones eram Miguel Arraes, Luiz Carlos Prestes e Leonel Brizola. Só que isso não aconteceu.
No que se pensou em perdoar quando se fez o texto?
O Figueiredo, sempre que estava conosco, dizia: "Não quero perdão porque perdão pressupõe arrependimento e eu não estou pedindo a eles que se arrependam até de pegar em armas contra nós. Eu apenas quero que haja esquecimento recíproco".
Agora querem a revisão da lei, o que significa que não estão respeitando o esquecimento recíproco defendido por Figueiredo.
Exatamente. Nós esquecemos todo aquele ambiente de luta e disputa e na oposição houve líderes de importância que não esqueceram. Eu destaco até uma declaração do Passarinho, de que a lei sofreu alterações e acabou se convertendo em uma fábrica de benefícios para supostos heróis. José Genoino, quando era presidente do PT, chegou a dizer que anistia é reparação e não promoção financeira. E eu endosso essas afirmações.
Quem selecionou as pessoas a serem beneficiadas?
Eu era chefe secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional e guardava o arquivo dos punidos. Sabia um a um o nome das 2.200 pessoas que foram beneficiadas com a Lei de Anistia. O trabalho maior foi do Petrônio Portela, que ouvia colegiados e pessoas individualmente, inclusive líderes da oposição.
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