Zero Hora 31/08/09
Paulo Brossard
Entre os tropeços do presidente da República nos últimos dias, dissonantes de sua habitual galhardia no manejo da palavra, lembrei que ele “entrou a litigar abraçando a causa de uma entre duas altas servidoras, como se fosse adequado a um presidente imiscuir-se em controvérsia dessa ordem”. Limitei-me a dizer que ele detém soma de poderes que vão além dos que lhe assina a Constituição. São imensos, mas nem por isso duram sempre. Mais não disse porque prefiro ficar no mundo objetivo dos fatos em vez de perambular por entre intermináveis subjetividades. Contudo, confesso, não supunha que tão cedo se estampassem os efeitos danosos de suas indevidas interferências, tudo para prestigiar a servidora que ele, unipessoalmente, fizera candidata à sua sucessão.
Num repente, número expressivo de altos funcionários da Receita demitiu-se das funções de confiança que vinham exercendo, denunciando a contaminação do serviço pelo vírus da politiquice. Dia seguinte, mais um lote deles, distribuídos por vários Estados, repetiu o gesto insuspeitado. Mais um dia, e novo contingente. Só em São Paulo, foram 20. E, desse modo, em setor de particular responsabilidade, inopinadamente, armou-se séria crise ou que outro nome tenha ou lhe seja dado.
Embora todos os segmentos do serviço público tenham a mesma natureza, interligados por regras tradicionais do Direito Administrativo e hoje por preceito expresso da Constituição, nem todos eles se igualam. Os setores militares, por exemplo, têm peculiaridades decorrentes de sua própria natureza; igualmente os referentes às relações exteriores; o segmento da Receita também tem suas características. Começa por ser dos melhor aparelhados, aliás, para lidar com múltiplas situações distribuídas por enormes faixas de brasileiros e estrangeiros aqui residentes; ou muito me engano, ou para a Receita não há segredos inacessíveis; vou além, pela posse de seus instrumentos de trabalho, chega a ser perigosa, razão por que o desvio de um milímetro nas regras de isenção, objetividade, discrição, reserva, equilíbrio, imparcialidade, enfim da fidelidade às suas finalidades, pode converter-se em insegurança coletiva e descrédito fatal de um serviço relevante. Não me sinto habilitado a opinar a respeito do caso, mas as circunstâncias que têm cercado o episódio não são lisonjeiras, pois ninguém pode ignorar nem menosprezar o sentido da demissão da chefe da Receita seguida de demissão de altos servidores, em declarado sinal de protesto pelo ingresso do partidismo em setor que não pode ser contaminado por esse mal que, começado, não se sabe como e onde termina.
Esta a situação atual da Receita. Sem pretender firmar uma conclusão a respeito do que está acontecendo ou do que aconteceu, volto a acentuar, o que há é uma situação de inafastável perplexidade ou de muitas perplexidades. E isto, querendo ou não, compromete a credibilidade do serviço. Para o ministro da Fazenda, isso não passa de “balela” e o que se pretende ocultar é a ineficiência da antiga chefe do órgão. Seria preferível que o ministro não tivesse falado. Um troca-tintas qualquer poderia ficar nesse plano, um ministro de Estado não poderia. É verdade que este já se celebrizou com os acontecimentos da abolição da CPMF em dezembro de 2007 e o compromisso feito em nome do presidente da República acerca de não serem aumentados tributos que compensassem a extinção da famosa contribuição provisória, que agora, com outro nome, se pretende ressuscitar.
O que me parece fora de dúvida é que os serviços da Receita hão de ser acima de qualquer dúvida acerca de sua idoneidade ou ela se converte em instrumento de insegurança de brasileiros e estrangeiros residentes no país, como proclama a Constituição. E não será com expedientes de subúrbio que a boa reputação será restabelecida.
*Jurista, ministro aposentado do STF
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