Estado de Minas 28/08/09
João Marques Brandão Néto
Procurador da República
A lei brasileira nem sempre consegue revogar o costume. Um deles que a lei não conseguiu revogar é chamar o Ministério Público, nos processos judiciais, de Justiça pública. Não que exista uma Justiça privada, mas é que, por longo tempo, no Brasil, o juiz presidiu a investigação. A história da investigação criminal entre nós talvez comece com as Ordenações Afonsinas (1456). Talvez, porque desde o século 12 o rei legislava em Portugal. Mas o detalhamento da investigação criminal chegou até nós e ficou por mais tempo nas Ordenações Filipinas (1603). Quando em vigor, a investigação criminal se limitava, basicamente, à audiência de testemunhas. Essa investigação criminal, que hoje chamamos inquérito, então se chamava “devassa”. As devassas eram conduzidas pelos juízes (Livro 1, título 65, itens 31 a 72), que podiam ser “de fora” (nomeados pelo rei) ou “ordinários” (eleitos por homens bons moradores de um determinado “concelho”).
Com a declaração de independência do país, diversas medidas processuais foram tomadas e, numa delas, já se fez a separação entre investigação e processo: o ato 81, de 2 de abril de 1824, impediu que o juiz da devassa julgasse a causa. Mas a consolidação das mudanças ocorridas no processo penal, depois da independência, se deu com o Código de Processo Criminal de 1832, que também inovou – não muito – a investigação criminal. O inquérito policial, então chamado corpo de delito, era feito pelo juiz de paz (art. 12). Mas havia muita confusão na parte que estipulava quem podia fazer a acusação: ora a Justiça, ora o promotor (Código Criminal do Império, 1831, art. 312), ora o acusador privado (Regulamento 120, de 31 de janeiro de 1842, artigos 337 a 339).
Até 1841, portanto, a investigação criminal era feita por juízes: juízes ordinários, na vigência das ordenações, e juiz de paz, de 1832 a 1841. Em 1841, é que os chefes de polícia e seus delegados também passam a fazer investigação. Note-se que é aí que surge a expressão “delegado”, ou seja, o que recebe delegação do chefe de polícia. Mesmo assim, só os desembargadores e os juízes de direito podiam ser chefes de polícia; e só os juízes e cidadãos podiam ser delegados e subdelegados (todos amovíveis e obrigados a aceitar o encargo – Lei 261/1841, art. 2º). Mas a Lei 261 mantinha atribuições policiais com os juízes municipais (art. 17, parágrafo 2º).
A polícia judiciária é criada no Brasil em 1842 (Regulamento 120). Mas a investigação continua a se chamar “auto de corpo de delito” e “formação da culpa” (art. 198) e pode ser conduzida pela polícia ou pelos juízes municipais (art. 262). O inquérito policial, com a conformação mais próxima da que hoje é conhecida, surge no Brasil em 1871 (Decreto 4.824). Sua definição aparece no art. 42, era atribuição da polícia, mas as autoridades judiciárias poderiam nele interferir. Ou seja: continuava a não ser monopólio da polícia e, sim, do Judiciário. Mesmo assim, seu destinatário era o promotor público (art.44), também considerado uma autoridade judiciária.
Com a proclamação da República, cada estado passou a ter sua legislação processual penal. De 1891 a 1941, vigoraram os códigos processuais dos estados, mas Almeida Júnior, em livro de 1911, sempre se reporta às disposições do Código de Processo Criminal de 1832 e leis e decretos que o modificaram, quando escreve já no período republicano. Em 1941, entrou em vigor o atual Código de Processo Penal. Sua espinha dorsal ainda guarda muita semelhança com a legislação processual do Império. O inquérito policial é dirigido pela polícia, mas o destinatário é o juiz (art. 10, parágrafo 1º). Só com a Constituição de 1988, que consagra o monopólio da ação penal pelo Ministério Público (art. 129, I), é que começa a ocorrer uma desjudicialização dos procedimentos investigatórios. Talvez por isso é que, quando se pensa num Ministério Público investigativo, se imagine a figura de um magistrado fazendo diligências policiais. Mas é mera ilusão ótica, causada por um passado que se caracterizou pela investigação sendo conduzida ou controlada pelos juízes, pois quem acusa e é parte, por óbvio, pode e deve participar da coleta de provas.
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