domingo, 23 de agosto de 2009

Lei de anistia faz 30 anos questionada

Jornal do Brasil 23/08/09
Luiz Orlando Carneiro, Jornal do Brasil

BRASÍLIA - A Lei de Anistia completa 30 anos na próxima sexta-feira – com direito a sessão solene comemorativa da Câmara dos Deputados no dia 31 – sem que o Supremo Tribunal Federal tenha dado ainda a palavra final sobre a extensão dos seus efeitos aos acusados de crimes de tortura durante a ditadura militar. A arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 153) ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil em outubro do ano passado – que contesta a validade do artigo 1º da Lei 6.683, segundo o qual são anistiados “todos quantos, no período entre 2/9/1961 e 15/8/1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes” - está à espera do parecer necessário da Procuradoria-Geral da República desde fevereiro. O Conselho Federal da OAB enviou requerimento ao relator da ADPF, ministro Eros Grau, no último dia 7, solicitando que o Ministério Público “seja intimado a devolver os autos”.

A Advocacia-Geral da União já se posicionou a favor do reconhecimento do caráter “amplo, geral e irrestrito” da anistia, e pede que o STF nem conheça da ação, por “ausência de controvérsia jurídica ou judicial sobre a Lei de Anistia”, requisito para a apresentação desse tipo de demanda. Embora a AGU represente o governo no processo, o Ministério da Justiça e a Secretaria Especial de Direitos Humanos manifestaram-se a favor da ADPF; a Consultoria-Geral da União e o Ministério da Defesa defendem os argumentos da AGU.

A expectativa no STF é de que a maioria do plenário, no mérito, mantenha a anistia geral prevista na lei de 1979, mesmo para os agentes públicos militares e civis acusados de tortura – crime que só foi tipificado pela Lei 9.455/97 – e apesar do dispositivo constitucional (artigo 5º, inciso 43) segundo o qual “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos”.

O presidente da OAB, Cezar Britto, no entanto, está otimista:

– Não tenho dúvidas de que teremos uma decisão histórica no Supremo, e o Brasil vai poder ficar em paz com a sua história. Só ficaremos em paz com a nossa história quando o Brasil reconhecer, como têm feito alguns países, que aqui torturador não tem vez. A tortura não é crime político, não é crime conexo, mas crime de lesa-humanidade, inserindo-se, assim, no contexto internacional, ao qual devemos nos juntar para combater a tortura no mundo todo.

Em fevereiro, o jurista Fábio Konder Comparato, presidente da Comissão Nacional de Defesa da República e da Democracia da OAB e principal signatário da ADPF, apresentou manifestação nos autos da ação com críticas contundentes ao parecer aprovado pelo advogado-geral da União, José Antonio Dias Toffoli. Para o jurista, “ou ele (Toffoli) não sabe o que é uma ADPF ou então a conduta processual da AGU, nesta demanda, não se coaduna com as elevadas funções do órgão”. A tese de Comparato é de que a ADPF “não é um processo litigioso, pois seu objetivo não é uma lide, isto é, um conflito de interesses, caracterizado pela pretensão de uma das partes e pela resistência de outra ou outras”. E ressalta que, nesse tipo de ação, “não há partes, no sentido técnico da palavra, que justificassem a intervenção ou tomada de partido pela AGU”.

Para os advogados da União, não se pode deixar de levar em conta o enunciado do inciso 40 do artigo 5º da Constituição: “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. E acrescentam: “Não há como se admitir que a ordem jurídica inaugurada com a Carta de 1988 retroaja para atingir situações consolidadas quase 10 anos antes de sua promulgação, revestindo-se do caráter de lei penal mais gravosa”. Como o inciso 43 do mesmo artigo “encerra disposição mais grave acerca da causa extintiva de punibilidade” (crimes insuscetíveis de anistia), o parecer da AGU conclui que “apenas os crimes de tortura praticados após a promulgação da Carta de 1988 encontram-se sob o âmbito da aplicação do postulado”.



Desarmamento

Os advogados da União criticaram a OAB por ter esperado 30 anos de vigência da Lei de Anistia e 20 anos de vigência da Constituição para “mudar a interpretação (da lei) e, tardiamente, apresentar uma extemporânea irresignação”.

Lembram que, em agosto de 1979, o então conselheiro da entidade Sepúlveda Pertence, hoje ministro aposentado do STF, enviou parecer sobre o projeto de lei de anistia, em tramitação no Congresso, no qual dizia: “Nem a repulsa que nos merece a tortura impede reconhecer que toda a amplitude que for emprestada ao esquecimento penal desse período negro de nossa História poderá contribuir para o desarmamento geral, desejável com o passo adiante no caminho da democracia”. E arrematava: “De outro lado, de tal modo a violência da repressão política foi tolerada – quando não estimulada, em certos períodos pelos altos escalões do Poder – que uma eventual persecução penal dos seus executores materiais poderá vir a ganhar certo contorno de farisaísmo”.

– Acordamos tarde demais para o problema da Lei de Anisitia– reconhece Konder Comparato. – O que se quer, agora, é que a mais alta Corte do país julgue definitivamente se os que cometeram atos abomináveis de assassinato, tortura e estupro contra presos políticos podem continuar no anonimato e se são beneficiários de uma anistia que, pela própria estrutura da lei, não podia beneficiá-los.






Luiz Orlando Carneiro, Jornal do Brasil

BRASÍLIA - A Lei de Anistia completa 30 anos na próxima sexta-feira – com direito a sessão solene comemorativa da Câmara dos Deputados no dia 31 – sem que o Supremo Tribunal Federal tenha dado ainda a palavra final sobre a extensão dos seus efeitos aos acusados de crimes de tortura durante a ditadura militar. A arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 153) ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil em outubro do ano passado – que contesta a validade do artigo 1º da Lei 6.683, segundo o qual são anistiados “todos quantos, no período entre 2/9/1961 e 15/8/1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes” - está à espera do parecer necessário da Procuradoria-Geral da República desde fevereiro. O Conselho Federal da OAB enviou requerimento ao relator da ADPF, ministro Eros Grau, no último dia 7, solicitando que o Ministério Público “seja intimado a devolver os autos”.

A Advocacia-Geral da União já se posicionou a favor do reconhecimento do caráter “amplo, geral e irrestrito” da anistia, e pede que o STF nem conheça da ação, por “ausência de controvérsia jurídica ou judicial sobre a Lei de Anistia”, requisito para a apresentação desse tipo de demanda. Embora a AGU represente o governo no processo, o Ministério da Justiça e a Secretaria Especial de Direitos Humanos manifestaram-se a favor da ADPF; a Consultoria-Geral da União e o Ministério da Defesa defendem os argumentos da AGU.

A expectativa no STF é de que a maioria do plenário, no mérito, mantenha a anistia geral prevista na lei de 1979, mesmo para os agentes públicos militares e civis acusados de tortura – crime que só foi tipificado pela Lei 9.455/97 – e apesar do dispositivo constitucional (artigo 5º, inciso 43) segundo o qual “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos”.

O presidente da OAB, Cezar Britto, no entanto, está otimista:

– Não tenho dúvidas de que teremos uma decisão histórica no Supremo, e o Brasil vai poder ficar em paz com a sua história. Só ficaremos em paz com a nossa história quando o Brasil reconhecer, como têm feito alguns países, que aqui torturador não tem vez. A tortura não é crime político, não é crime conexo, mas crime de lesa-humanidade, inserindo-se, assim, no contexto internacional, ao qual devemos nos juntar para combater a tortura no mundo todo.

Em fevereiro, o jurista Fábio Konder Comparato, presidente da Comissão Nacional de Defesa da República e da Democracia da OAB e principal signatário da ADPF, apresentou manifestação nos autos da ação com críticas contundentes ao parecer aprovado pelo advogado-geral da União, José Antonio Dias Toffoli. Para o jurista, “ou ele (Toffoli) não sabe o que é uma ADPF ou então a conduta processual da AGU, nesta demanda, não se coaduna com as elevadas funções do órgão”. A tese de Comparato é de que a ADPF “não é um processo litigioso, pois seu objetivo não é uma lide, isto é, um conflito de interesses, caracterizado pela pretensão de uma das partes e pela resistência de outra ou outras”. E ressalta que, nesse tipo de ação, “não há partes, no sentido técnico da palavra, que justificassem a intervenção ou tomada de partido pela AGU”.

Para os advogados da União, não se pode deixar de levar em conta o enunciado do inciso 40 do artigo 5º da Constituição: “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. E acrescentam: “Não há como se admitir que a ordem jurídica inaugurada com a Carta de 1988 retroaja para atingir situações consolidadas quase 10 anos antes de sua promulgação, revestindo-se do caráter de lei penal mais gravosa”. Como o inciso 43 do mesmo artigo “encerra disposição mais grave acerca da causa extintiva de punibilidade” (crimes insuscetíveis de anistia), o parecer da AGU conclui que “apenas os crimes de tortura praticados após a promulgação da Carta de 1988 encontram-se sob o âmbito da aplicação do postulado”.


Desarmamento

Os advogados da União criticaram a OAB por ter esperado 30 anos de vigência da Lei de Anistia e 20 anos de vigência da Constituição para “mudar a interpretação (da lei) e, tardiamente, apresentar uma extemporânea irresignação”.

Lembram que, em agosto de 1979, o então conselheiro da entidade Sepúlveda Pertence, hoje ministro aposentado do STF, enviou parecer sobre o projeto de lei de anistia, em tramitação no Congresso, no qual dizia: “Nem a repulsa que nos merece a tortura impede reconhecer que toda a amplitude que for emprestada ao esquecimento penal desse período negro de nossa História poderá contribuir para o desarmamento geral, desejável com o passo adiante no caminho da democracia”. E arrematava: “De outro lado, de tal modo a violência da repressão política foi tolerada – quando não estimulada, em certos períodos pelos altos escalões do Poder – que uma eventual persecução penal dos seus executores materiais poderá vir a ganhar certo contorno de farisaísmo”.

– Acordamos tarde demais para o problema da Lei de Anisitia– reconhece Konder Comparato. – O que se quer, agora, é que a mais alta Corte do país julgue definitivamente se os que cometeram atos abomináveis de assassinato, tortura e estupro contra presos políticos podem continuar no anonimato e se são beneficiários de uma anistia que, pela própria estrutura da lei, não podia beneficiá-los.

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