O Estado de São Paulo 03/08/09
Certamente não existem nas Constituições de outras nações sob o regime de Estado Democrático de Direito dispositivos tão explícitos como os contidos na Carta brasileira, que garantam a plena liberdade de expressão e proíbam qualquer forma de censura prévia aos veículos de comunicação. Reunidos após uma prolongada ditadura militar que amordaçou a imprensa, os constituintes trataram de proscrever qualquer forma de censura prévia ou restrição à liberdade de expressão. Assim é que nem a Constituição norte-americana, matriz institucional da liberdade de imprensa, dispõe de regras tão claras como as estabelecidas em nossa Constituição. No artigo 5º, item IX, ela assegura a livre comunicação; no item XIV, assegura a todos o acesso à informação; e, no artigo 220, determina expressamente que a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerá qualquer restrição.
Daí a repercussão indignada, no País e no exterior, que causou a censura judicial imposta a este jornal por um desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. O caso se soma - tendo a sua dimensão aumentada por se tratar de um atentado às liberdades públicas - aos escândalos que envolvem a família Sarney e seu patriarca, que teimosamente insiste em continuar presidindo o Senado da República sem mais dispor de condições políticas ou morais para fazê-lo. Fernando Sarney, filho do senador e principal gestor dos negócios da família, tentou na Justiça Federal obter um mandado que proibisse o Estado de continuar publicando matérias sobre a Operação Boi Barrica, da Polícia Federal, que investiga aqueles mesmos negócios. O pedido foi negado. Tentou, a seguir, o mesmo expediente na primeira instância da Justiça do Distrito Federal, tendo o juiz considerado o pedido - que também negou - "uma afronta à liberdade de imprensa". Apresentado novamente, desta vez ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal, o desembargador Dácio Vieira acatou o pedido e impôs a censura prévia a este jornal.
Causa espécie, antes de mais nada, o fato de esse desembargador não ter se declarado impedido de proferir decisão monocrática, uma vez que é profundamente ligado - como mostra foto estampada na edição de sábado do Estado - tanto a José Sarney quanto ao ex-diretor do Senado Agaciel Maia, os principais protagonistas dos escândalos que jorram da Câmara Alta. Antes de ser desembargador, Vieira ocupara um cargo de confiança na gráfica do Senado e fora consultor jurídico da Casa. Nessa condição, recebera do senador maranhense do Amapá, tanto quanto do poderoso ex-diretor-geral do Senado, apoios decisivos para sua investidura no Tribunal.
Como era de esperar, foi imediata e generalizada a reação ao ato de censura prévia, flagrantemente inconstitucional e afrontoso à democracia. Segundo o senador Jarbas Vasconcelos, a escolha "desse caminho pela Justiça é um retrocesso terrível e injustificável". O senador Pedro Simon condenou: "O homem da transição democrática agora comete um ato da ditadura." O senador Eduardo Suplicy enfatizou que "é um direito da população ser informada sobre diálogos que ferem a ética". E a Associação Nacional de Jornais (ANJ), por seu vice-presidente e responsável pelo Comitê de Liberdade de Expressão, Julio César Mesquita, condenou veementemente a decisão do desembargador Vieira, depois de destacar que é inaceitável que pessoas ligadas à atividade jornalística (como é caso da família Sarney, que controla jornais, rádios e televisões) "recorram a um expediente inconstitucional, conforme recente decisão do Supremo Tribunal Federal, para subtrair ao escrutínio público operações com graves indícios de ilegalidade". O ex-presidente do Supremo Carlos Veloso, por sua vez, considerou a medida judicial um excesso, que de fato constituiu uma censura. Na mesma linha pronunciaram-se representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pessoas preocupadas com a ameaça à liberdade de expressão.
Mais importante do que o direito que tem o jornal de informar é o direito que tem o cidadão de ser informado - dizia a Suprema Corte norte-americana, interpretando, na década de 1970, o sentido da liberdade contido na Primeira Emenda. Esperemos que a Justiça brasileira trilhe esse caminho e não permita que prosperem afrontas à democracia que a sociedade brasileira, apesar de tudo e a duras penas, tem conseguido construir.
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