segunda-feira, 3 de agosto de 2009

País policial

Zero Hora 03/08/09

Paulo Brossard
*Jurista, ministro aposentado do STF

Foram tantos os abusos cometidos durante o período autoritário, a despeito de a Carta outorgada em 1969 reproduzir a tradicional declaração de direitos e garantias individuais, que a Constituição de 88 cuidou de enriquecê-la. Assim, antes dela, se entendia que o direito à intimidade era inerente ao direito à vida, à inviolabilidade, à vida privada, honra e imagem da pessoa; contudo, a Constituição dispôs explicitamente: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral de sua violação”, artigo 5º, X. Pois nunca foi tão copiosa a violação desses direitos invioláveis. Se não estou em erro, contribuíram para esse abuso convênios permissivos da liberação do sigilo, graças ao que, segundo noticiado, milhares foram concedidos, não se sabe em que termos e por que fundamentação.
Como é notório, até o telefone do ministro presidente do STF foi violado. Por sinal, no momento em que escrevo leio declaração sua, segundo a qual “a Polícia Federal, durante todo o governo Lula, praticou com grande tranquilidade o vazamento”. O mais grave, porém, é que essa liberação foi acompanhada pela divulgação desmedida do seu conteúdo, integral ou parcial, mutilado ou não, frases soltas, inclusive. Ora, a Constituição permite em hipóteses determinadas, “na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”, referente a “comunicações telefônicas”. Nem a autoridade que pode pleitear junto à entidade judiciária a quebra do sigilo, assegurado a “comunicações telefônicas”, pode divulgar e apurar; no entanto, se tornou moda a ampla publicidade de “comunicações telefônicas” privadas. Tem mais, em um caso, pelo menos, autoridade policial veio a público declarar que não liberara a publicação de matéria veiculada na imprensa e na televisão. Descabe questionar aqui se, em outros casos, teria liberado o que lhe seria defeso; não obstante, o fato, hoje inegável, é que sobram pessoas, físicas e jurídicas, que têm acesso a essas captações, quando pela Constituição não têm sequer a possibilidade legal de requerer à autoridade judiciária competente o acesso àquilo que a Constituição declara inviolável, “é inviolável o sigilo...”, artigo 5º, XII.
Se um serviço público de responsabilidade da Polícia Federal procede assim, contrariando cláusula constitucional expressa, que se pode esperar de entidades privadas ou se o vazamento tiver inspiração partidária ou qualquer outra? A meu juízo, o caso é de particular gravidade. O fato é que a quebra do sigilo e, após, o vazamento de dados pessoais, em proporções nacionais, a despeito do que preceitua a Constituição, faz de nosso país um país policial e a Lei Maior uma irrisão. Não terão servido para nada os 20 anos de regime autoritário, contra o qual tão árdua foi a luta nacional?
O que venho mencionar tornou-se vulgar e parece ser normal, a despeito da inviolabilidade erigida em prescrição cogente, passar a ser violada à luz do sol.
Já estou imaginando que graças a essa inovação hermenêutica dir-se-á que crimes e crimes horrorosos podem vir a ser conhecidos. Não duvido, mas não esqueci que no mesmo artigo 5º, LVII, se estabelece que “ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado de sentença penal condenatória”... Esta a questão fundamental. Não se pode erodir normas expressas da Constituição amparado em intenções meritórias. De mais a mais, não me esqueci da lição secular de Rui Barbosa, segundo a qual “quando a lei cessa de proteger os nossos adversários, virtualmente cessa de proteger-nos”. O devido processo legal não pode ser substituído pela suspeita, ainda que bem-intencionada. A Constituição não pode ser cumprida ou descumprida em retalhos. Proceder assim pode ser a melhor maneira de destruí-la. Até quando isso pode continuar?

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